Insubmisso, marcante e arrebatador. Diz-se que o jornalismo se faz sem adjetivos, mas não seria possível deixar de recorrer a alguns na hora de deixar impresso o que foi a vida e a carreira de Vicente Jorge Silva. O jornalista, que foi também realizador e que fundou o jornal Público, em 1990, faleceu na madrugada de terça-feira, vítima de doença prolongada. Tinha 74 anos.
«Marcou a vida de todos os que consigo se cruzaram», disse Marcelo Rebelo de Sousa, que com ele conviveu nos corredores do Expresso. «O Presidente da República, que teve a honra de ser seu aluno em tantos instantes de vida partilhada e seu amigo e admirador sempre, recorda-o com inapagável saudade, mitigada pela sensação de que o seu testemunho continua presente como nunca», continuava a nota publicada no site da Presidência. Num tom menos institucional, Marcelo escreveu uma carta aberta ao «amigo e camarada nas fainas de pôr de pé jornais», em que evocava as «mil memórias comuns», a «sua gargalhada esfuziante», a «sua inteligência implacável» e até os «seus excessos – que não há toques de génio sem excessos».
Vicente Jorge Silva nasceu 8 de novembro de 1945, no Funchal. Calhou numa família de ilustres fotógrafos, tendo o seu filho mais velho, Miguel Silva – fotógrafo do i e do SOL – seguido as pisadas dos seus antepassados.
Já Vicente, que foi uma criança rebelde, ainda pensou estudar cinema, mas acabou por se deixar seduzir pelas palavras. Lá iremos. Antes, voltemos aos tempos do liceu, de onde o pai acabou por o retirar por sugestão de um professor, que o avisou que a tal personalidade vincada e desafiadora que o acompanhava desde menino estava prestes a dar problemas. Continuou os estudos no continente, mas assim que fez 18 anos rumou a Paris onde trabalhou numa fábrica de cola. E moldou a sua mundividência, tendo então tomado contacto com os intelectuais portugueses ali exilados. «Era um ser insubmisso e livre», escreveu após a sua morte jornalista Teresa de Sousa, no Público, recordando as características que o levaram, desde a juventude, a traçar um percurso que fugia à norma.
De Paris foi para Londres, com o intuito de estudar cinema, o que não viria a acontecer. Mas muitos anos mais tarde acabaria por se tornar cineasta, tendo realizado vários filmes, entre os quais Porto Santo (1997), a sua primeira longa-metragem, com Ana Zanatti, Leonor Silveira e Beatriz Batarda.
Depois da tentativa falhada em Londres volta ao Funchal, no final da década de 60, onde abraça pela primeira vez a profissão pela qual se viria a notabilizar: a de jornalista. Funda, com um grupo de amigos, o Comércio do Funchal, imprimindo-lhe uma nova dinâmica, cativando colaboradores e catapultando-o para a esfera nacional, como referência do jornalismo de esquerda. Cinco anos depois, em 1974, estava em Lisboa para continuar a carreira. Como diria a Isabel Lucas (Vicente Jorge Silva – Conversas com Isabel Lucas, ed. Temas & Debates): «Vim um pouco à aventura, pensei primeiro n’A Capital, onde se encontrava o Cáceres Monteiro, mas acabei no Expresso, onde conhecia o Francisco Pinto Balsemão dos tempos em que ele estivera à frente do Diário Popular». Balsemão não lhe deu «garantias de entrada imediata na redação», pelo que ficou apenas como colaborador. Não demorou a demonstrar o seu talento e criatividade como redator, responsável de secção, chefe de redação (nomeado por Marcelo Rebelo de Sousa, então diretor) e, finalmente, diretor-adjunto e mentor da Revista. «Tive o gosto de trabalhar com o Vicente na Revista do Expresso – foram tempos animados», resumiu Alexandre Pomar num post no Facebook.
«Tempos animados» pelo fervilhar de ideias, mas também por discussões acaloradas. Vicente falava alto, frequentemente gritava, o que uns atribuíam à sua surdez, outros à facilidade com que se exaltava. «Não suportava o erro. Era incapaz de ser hipócrita, pelo contrário: era de uma frontalidade por vezes brutal. Implacável», recorda José António Saraiva, seu amigo desde os 18 anos e diretor do Expresso na altura em que Vicente era diretor-adjunto e dirigia a Revista, num texto publicado no B,i,. «Quando se enervava, os seus olhos faiscavam, ficava vermelho como se fosse ter uma apoplexia, berrava. Tivemos alguns choques».
Vítor Rainho, diretor executivo do i e do SOL, recordou também esta semana, num texto publicado no i, a personalidade peculiar de Vicente Jorge Silva, o seu sentido de humor e a agitação que era o fecho da Revista. «Nessas noites passava muita gente pela redação e o Vicente adorava picar alguns dos jornalistas ou críticos de cultura. Recordo-me de uma noite o ouvir chamar pelo Alexandre Pomar e, quando este apareceu no corredor, o Vicente pegou num pedaço de esferovite e enfiou-o na cabeça, dizendo que tinha acabado de fazer uma escultura do Pedro Cabrita Reis. Não faltava humor naquelas noites, cruzado com alguma agitação».
Criativo e cativante, um líder nato e um fazedor de jornalistas, não resistiu ao convite para fundar o Público, em 1990. Foi seguido por muitos jornalistas que com ele tinham privado no Expresso. Um dos que o acompanharam foi Jerónimo Pimentel, que deixou o seu tributo a Vicente no Facebook: «Um grande amigo, um homem genial, criativo, brilhante, afetivo e generoso. Trabalhámos juntos anos a fio e foi das pessoas que mais me marcaram. Surpreendeu-me sempre como amigo e como diretor dos jornais em que com ele trabalhei. Vai fazer-me muita falta não o ver mais, era sempre muito estimulante».
No Público, assinou alguns dos artigos mais memoráveis da década. Foi Vicente Jorge Silva quem, em 1994, cunhou a expressão «geração rasca», com a qual batizou os estudantes que se manifestaram de forma grosseira contra a austera ministra da Educação da altura, Manuela Ferreira Leite. A opinião dividiu-se sobre o rótulo, mas a expressão permaneceu até hoje.
Esteve uma década à frente do diário, que marcou o ADN do Público e o próprio panorama jornalístico nacional, conquistando primeiro o Prémio Cupertino de Miranda, à época o mais importante do meio, e, em 1995, a Gazeta de Mérito atribuída pelo Clube de Jornalistas.
Afastou-se um pouco desgastado e foi deputado pelo PS entre 2002 e 2004. Mais tarde, viria a categorizar a passagem pela política como «um equívoco». «Para quem é jornalista de alma e coração é muito difícil adaptar-se aos constrangimentos do mundo político. Não é possível a gente mudar de pele e de alma», diria numa entrevista à RTP Madeira.
Nos últimos anos, mesmo não estando diariamente na redação, não se afastou da vida jornalística. Foi colaborador do SOL, regressando depois ao Público, onde publicou o seu último texto na edição de 9 de agosto. Na semana seguinte, fortemente abalado por um tratamento, telefonou a Nuno Pacheco a avisar que já não conseguia enviar o texto que ocupava a última página aos domingos.
Nas páginas dos jornais e pelas redes sociais, muitos foram os profissionais que trabalharam com Vicente Jorge Silva que, ao longo desta semana, foram deixando as suas despedidas. «A minha vida, pura e simplesmente, nunca será desligável profissionalmente (nem humanamente) da tua e por isso levaste contigo um bocadinho de mim, tanto – mas tanto – foi o que vivemos juntos», escreveu Maria João Avillez, sua grande amiga, no Observador.
Vicente Jorge Silva, apreciador das coisas boas da vida, de uma refeição como deve ser, manteve até ao fim o hábito de ir ao cinema uma vez por semana na companhia de familiares – e por vezes chegava a assistir a mais de uma sessão no mesmo dia. Para lá de Miguel, deixa outros dois filhos, Vicente e Laura, esta última filha da mulher, Rosana, que Vicente dizia muitas vezes ter sido «uma das melhores coisas que lhe aconteceu na vida». E ainda um neto, também chamado Vicente, além de duas irmãs mais novas: Cristina, que vive na Alemanha, e Carolina, adjunta da direção e administração do i e do SOL, que esta semana se despediu do seu «maior e melhor amigo».
*com Mariana Madrinha