Não há ser humano perfeito, como não há uma verdade unívoca. Assim nos fez ver Kurosawa. No período Edo japonês (1603-1868), havia a figura dos ronin, samurais desonrados por terem contrariado o que a vida lhes destinara, aquilo que deles se esperava: que, uma vez perdendo os seus mestres, pusessem fim à própria vida. Quando entre a morte e a desonra optavam pela segunda, sobrava-lhes a arte, aquela para a qual tinham sido treinados. Tornavam-se então frequentemente mestres da espada a soldo, mercenários, carregando para sempre a culpa da desonra. Isto a Oriente. A Ocidente, a história conta-se de outra forma, e em grande parte graças a um homem: Akira Kurosawa. Mestre do cinema japonês que foi capaz de os fazer heróis — anti-heróis — mas mais do que isso: que fez o Ocidente olhá-los como quem olha um superhomem.
Akira Kurosawa, um dos grandes mestres do cinema japonês a que, depois dos ciclos retrospetivos dedicados a Yasujiro Ozu e Kenji Mizogucchi, a Leopardo Filmes regressa entre este mês e o próximo num ciclo de sete filmes que percorrem a mais prolífica fase da sua carreira, foi o primeiro cineasta japonês a obter reconhecimento internacional quando em 1951 Veneza lhe deu o Leão de Ouro por Rashômon – Às Portas do Inferno. Entre as figuras de um assassino, um ladrão e um sacerdote, um filme sobre a imperfeição, sobre a verdade como lugar inatingível, vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro no ano seguinte e a propósito do qual escreveu o crítico Andrew Johnston na Time Out New York ser provavelmente um filme familiar até para aqueles que nunca o viram: «Uma vez que no jargão do cinema o título do filme se tornou sinónimo com o conceito da sua narrativa: uma história contada múltiplas vezes de vários pontos de vista», explicou. «Há muito mais do que isso no filme, claro. Por exemplo, a forma como Kurosawa usa a câmara… aproxima mais esta meditação fascinante sobre a natureza humana do estilo do cinema mudo do que quase tudo o que foi feito desde a introdução do som».
Não é desse filme que parte o ciclo que se iniciou já nesta quinta-feira no Espaço Nimas, em Lisboa, dedicado àquele de entre os mestres do cinema japonês «que mais contribuiu para o seu conhecimento e divulgação no Ocidente». 7 filmes de Akira Kurosawa, título com que foi batizado o ciclo, percorre sete filmes dos seus filmes em cópias digitais restauradas, cinco dos quais nunca chegaram a estrear nas salas portuguesas. E pode ter ficado de fora Rashômon – Às Portas do Inferno, mas é na verdade sete o número perfeito para um regresso a Kurosawa. Afinal eram sete os samurais do filme que chegou aos dias de hoje como provavelmente o mais icónico de um percurso como cineasta que se estendeu por seis décadas.
Numa votação para a qual em 2018 a BBC Culture convidou 41 críticos, Os Sete Samurais, filme com que no Espaço Nimas, em Lisboa, se iniciou na quinta-feira o ciclo dedicado a Kurosawa, foi o mais votado num ranking dos 100 melhores filmes de língua inglesa. Graças às preferências dos críticos internacionais:entre os japoneses que integravam essa poll, nenhum votou em Kurosawa, que secundou em todos os casos Ozu, outro dos grandes mestres do cinema japonês. Mas é um facto que foi Kurosawa o responsável primeiro pela exportação do cinema nipónico a ocidente, e prova-o não só o reconhecimento que obteve além fronteiras (a juntar às distinções que lhe atribuiu Veneza, foi várias vezes premiado em Berlim, uma delas com um Urso de Prata de melhor realização, com A Fortaleza Escondida, e vencedor de uma Palma de Ouro em Cannes, com Kagemusha, em 1980;recebeu em 1990 um Óscar honorário da Academia de Cinema norte-americana).
Olhando para o universo de referências de Kurosawa e para os dos seus contemporâneos Ozu ou Mizoguchi, que só mais tarde foram descobertos a Ocidente, o resultado de preferências não é de todo surpreendente. Iniciado no cinema num pós-IIGuerra que Japão e Estados Unidos atravessaram em lados opostos, Kurosawa percorreu um caminho improvável, até nas referências. Entre os códigos do que era já o western e Shakespeare, abraçou, entre histórias de samurais e referências da cultura do país em que nasceu, os códigos narrativos de Hollywood. Mais do que pioneiro na exportação do cinema japonês, foi também um pioneiro numa forma de cinema a que se pode chamar internacional, entre o Oriente e o Ocidente.
E se hoje se escreve sobre a influência da sua obra no western, recue-se à sua infância e ao princípio do que foi a sua relação com o cinema. Nascido em Tóquio a 23 de março de 1910, Akira Kurosawa, o mais novo de uma família de oito irmãos e filho do diretor de uma escola secundária dirigida por militares.
Foi logo durante a infância que foi crescendo a paixão de Akira pelo cinema, através do seu pai, que lhe deu a conhecer os westerns. Depois de uma primeira tentativa de uma carreira na pintura, depressa acabou por se voltar para o cinema. Começou por trabalhar como assistente de realização e em 1943 realizou o seu primeiro filme:Sanshiro Sugata, que acompanhava a história de autodescoberta de um jovem judoca chamado Sugata.
Bem sucedido tanto entre a crítica como entre o público, seria o primeiro dos passos que o levariam 12 anos depois a Veneza e todo o seu cinema ao Ocidente, onde se tornou ele próprio uma influência para outros cineastas. Basta pensar num par de exemplos de remakes de filmes seus: Por um Punhado de Dólares, protagonizado por Clint Eastwood, é o remake que Sergio Leone assinou em 1964 de Yojimbo; The Magnificent Seven, filme de 1960, é a versãio de John Sturges de Os Sete Samurais.
«Os Sete Samurais deve seguramente parte da sua popularidade no Ocidente ao facto de, na era pré-VHS, ter sido um dos primeiros filmes japoneses que muitas pessoas viram», escreveu Anne Billson no BBC Culture. «Introduziu uma cultura que era estrangeira mas intrigante, e acessível a audiências habituadas aos westerns americanos. Numa fase mais tardia tendeu a desvalorizar o seu entusiasmo com os filmes de John Ford mas a sua proeza foi conseguir combinar as convenções do western com uma nova fusão radical de géneros japoneses: o chambara (filme com espadas) e o jidaigeki (drama de época)».
O mestre dos samurais, poderíamos chamar-lhe. E na verdade podemos:afinal descendiam eles próprios, a família Kurosawa, de uma linhagem de samurais.
1. Viver – Ikiru (1952)
Depois do sucesso em Veneza com Rashomon – Às Portas do Inferno, Kurosawa levou apenas um ano a estrear um novo filme, Hakuchi, e outro até terminar Ikiru. Estreado em 1952, é o filme mais antigo do ciclo 7 filmes de Kurosawa, no Espaço Nimas, em Lisboa, iniciado na última quinta-feira com a estreia da cópia restaurada de Os Sete Samurais e que exibirá a partir do próximo dia 24 Yojimbo, o Invencível, ambos filmes que tinham sido já exibidos em sala em Portugal. Caso contrário é o de Viver – Ikiru, de 1952, que se manteve até aqui comercialmente inédito no país. Em 1954 nomeado para o Urso de Ouro em Berlim, conta a história de Kanji Watanabe, um funcionário municipal que descobre que tem um cancro e que só lhe restam três meses de vida. Confrontado com o vazio que lhe parece ter sido a sua vida até então, dedica-se à transformação de um terreno baldio num parque em que as crianças possam brincar.
2. Os sete samurais (1954)
«Um filme de ação pode não ser mais do que um filme de ação. Mas como é́ maravilhoso se ele puder ao mesmo tempo pintar a humanidade», disse Akira Kurosawa sobre Os Sete Samurais, que da estreia aos dias de hoje permanece não só como o mais icónico dos seus filmes como de todo o cinema japonês. «Esse foi sempre o meu sonho desde a época em que era assistente de realização. Depois destes anos todos, sonho reconsiderar o drama antigo a partir deste ponto de vista». Não apenas para Kurosawa este foi um filme seminal. Um punhado de anos depois, John Sturges estreava The Magnificent Seven, um remake deste filme com que em Veneza Kurosawa venceu o Leão de Prata de melhor realização. Com a história de seis samurais que liderados por Kambei decidem defender um um grupo de camponeses ameaçados por roubos, inspirado segundo o próprio por John Ford, Kurosawa levou o western ao Japão feudal do século XVI.
3. O trono de sangue (1957)
Mais um filme que até aqui permaneceu comercialmente inédito em Portugal, O Trono de Sangue chega pela mão da Leopardo Filmes às salas apenas a 15 de outubro, como a última das estreias do ciclo dedicado ao mestre do cinema japonês. Neste filme que em 1957 voltou a levar o seu cinema ao Festival de Cinema de Veneza, em competição pelo Leão de Ouro, Kurosawa parte da história de dois generais que se perdem na floresta e encontram uma bruxa, que prevê que um deles, Washizu, será rei e que será sucedido pelos herdeiros do outro, Miki. Perante tal profecia, Washizu acaba por matar mata o seu senhor e além dele e Miki. Depois de atacado pelo filho de Miki, Washizu verá o seu filho nascer morto e a sua mulher enlouquecer. Para que se complete esta adaptação nipónica de Macbeth, de William Shakespeare (com algumas liberdades, como a fusão das personagens das três bruxas em apenas uma), faltará apenas que venham os seus homens traí-lo.
4. A Fortaleza Escondida (1958)
De novo com o Japão do século XVI e entre as guerras civis que o assolam como pano de fundo, a história de uma princesa perseguida que, em fuga com o seu tesouro, será escoltada por um general e dois camponeses aos quais é prometida uma recompensa em ouro caso consigam atravessar o território inimigo e chegar sãos e salvos a uma zona segura. Prémio FIPRESCI e Urso de Prata de Melhor Realização na edição de 1959 do Festival de Cinema Berlim, A Fortaleza Escondida não chegou às salas portuguesas na época e permaneceu comercialmente inédito no país até hoje. Isto apesar de George Lucas ter já afirmado que esta obra de Kurosawa foi uma das suas influências para o primeiro Guerra das Estrelas: Uma Nova Esperança, de 1977. Não apenas em matéria de princesas e de guerras, mas sobretudo na fórmula que seria recuperada desse filme seminal para A Ameaça Fantasma, que em 1999 inaugurou a trilogia das prequelas de Star Wars.
5. Yojimbo, o Invencível (1961)
Disse um dia Clint Eastwood que a razão que o fez aceitar o papel de protagonista no western Por Um Punhado de Dólares, de Sergio Leone, também ele convertido num clássico, foi a sua admiração por Akira Kurosawa. Era afinal um remake de Yojimbo, O Invencível o filme para o qual o convidavam. «Mesmo sem nunca ter trabalhado com ele, Kurosawa teve uma enorme influência na minha vida, simplesmente porque gostava tanto dos seus filmes. Se não fosse assim, provavelmente não teria feito Por Um Punhado de Dólares e a minha vida teria sido muito diferente». Não só para Clint Eastwood a participação no remake de Leone foi determinante. Também para Toshirô Mifune, ator que interpretou o mesmo papel na versão original de Kurosawa, passada numa pequena cidade a norte de Tóquio, e que com ele venceu em 1961 o prémio Volpi Cup de melhor ator em Veneza, festival em que também o filme foi distinguido com Prémio Novo Cinema.
6. O Barba Ruiva (1965)
Em inícios do século XIX, depois de vários anos passados em Nagasaki a estudar Medicina, o jovem Naburo Yasumoto regressa a Edo com a esperança de ser nomeado para a equipa médica da Corte, mas acaba nomeado para um hospital público. Dececionado e contrariado, começa por desrespeitar deliberadamente as regras do hospital, mas acabará por encontrar em Barba Ruiva, o homem à frente da instituição, um exemplo. Quando Otoyo, uma adolescente condenada à prostituição, adoece e procura os cuidados da clínica, Barba Ruiva encarregá-lo-á de a curar. Em Akahige, no título japonês de O Barba Ruiva, outra das obras de Kurosawa que nunca tiveram estreia comercial nas salas portuguesas, o cineasta explora duas das temáticas que lhe eram queridas: o humanismo e o existencialismo. Foi também outro dos seus filmes darem um Volpi Cup de melhor ator em Veneza aos seus protagonistas: desta feita a Toshiro Mifune, pela interpretação do jovem médico Naburo Yasumoto.
7. Dodeskaden (1970)
Desde o seu filme de estreia, Sugata Sanshirô, em 1943, até aos seus últimos filmes, já a entrar pela década de 1990 (o último, Mâdadayo, em correalização com Ishirô Honda, é de 1993; o cineasta morreu em 1998, aos 88 anos), Kurosawa continuou sempre a fazer filmes. A fase mais prolífica da sua carreira, que conta com mais de 30 obras enquanto realizador, termina contudo em meados da década de 1960, com O Barba Ruiva – depois disso, estrearia apenas sete filmes. É em Dodesukaden, de 1970, logo o seguinte (depois disso passaria a estrear um novo filme a cada cinco anos), que termina a cronologia pela qual se estende o ciclo 7 Filmes de Akira Kurosawa. Com estreia a 8 de outubro (uma estreia comercial absoluta no país), Dodesukaden é um filme coral, um retrato de diversos episódios da vida dos habitantes de um pequeno bairro de lata. Entre sonhos e a dureza da realidade, Kurosawa filmou a luta diária dos desprivilegiados pelas suas vidas.