“A música é uma espécie de segunda vida que nos foi dada”

Em 2013, cinco estudantes de Coimbra juntaram-se para tocar no sarau da irmã de um deles. Arranjaram um nome em cima da hora – Quatro e Meia, sendo Meia a alcunha de um dos membros da banda – e subiram ao palco. Três meses depois, juntava-se o último elemento ao grupo. A partir daí, começaram…

Tiago Nogueira (voz e guitarra) é hoje cirurgião cardiotorácico, Ricardo Liz Almeida (voz e guitarra) é pediatra, João Cristóvão Rodrigues (violino e bandolim) é professor de música; Pedro Figueiredo (percussão) é médico de família; Mário Ferreira, o homem do acordeão e do piano, é informático e criador de conteúdos audiovisuais e Rui Marques, o Meia, é o engenheiro civil que se ocupa do baixo e contrabaixo.

Começaram a esgotar salas, a máquina foi crescendo e foi assim, de forma orgânica e quase formando um nó górdio com o público que não os largava, que se tornaram num verdadeiro fenómeno. Depois do primeiro álbum, Pontos nos Is, lançado em 2018, chegou ontem o segundo trabalho da banda, O Tempo Vai Esperar. E se há alguém mestre em fazer render o tempo e provar que, com dedicação, resiliência e um bocadinho de loucura é mesmo possível ter duas profissões exigentes são eles: Os Quatro e Meia. Que, afinal, são seis. E que, à meia dúzia, garantem em uníssono, no português que escolhem sempre para as suas canções: sim, são uns privilegiados por poderem ter escolhido na vida não um, mas dois caminhos que os realizam de forma tão plena.

Por que vai o tempo esperar?

Tiago: O tempo vai esperar é um tempo que já tínhamos atribuído ao álbum antes da pandemia chegar. A coincidência da pertinência do nome não é mais do que isso, e também não tem nada de premonitório, como já nos chegaram a perguntar. É o nome de um dos temas e tem a ver com a nossa relação com o tempo e com a falta dele, e com a nossa capacidade de o usar da melhor forma, do que propriamente a ver com esta espera forçada pela qual todos passámos.

Até porque se costuma dizer exatamente o contrário: o tempo não espera.

Tiago: A verdade é essa. Temos outro tema no mesmo álbum que se chama Só Mais um Instante, em que dizemos que o tempo é cruel e distante e que gostávamos de ter só mais um instante para podermos realizar as coisas. No fundo, temos muito respeito pelo tempo porque percebemos que aquilo que é a nossa marca enquanto humanos tem muito a ver com a nossa capacidade de usá-lo para coisas realmente valiosas. O próprio álbum gira muito em torno dessa temática.

O Tiago é o porta-voz dos Quatro e Meia?

Ricardo: Todos os anos costumamos fazer uma campanha e temos eleições, costuma ser em junho. Há dois, três candidatos que fazem campanha e tem ganho sempre o Tiago.

Rui (Meia): O que acontece é que o Ricardo este ano se candidatou, veio falar comigo para votar nele…

Pedro: Agora falando a sério. Fazemos uma gala anual, um show de talentos dos seis, e desde o primeiro ano que o Tiago se ofereceu para apresentar. Nós achámos então que, se ele tinha capacidade para lidar com seis talentos deste gabarito, era o indicado para lidar com os media.

 

O Pedro foi o último a entrar, é o que não está nomeado no nome da banda. Nunca pensou apresentar uma moção de censura?

Pedro: Na verdade, isto é cruel porque os Quatro e Meia foi um nome remendado em cima da hora para a primeira atuação e ninguém imaginava o percurso que se viria a seguir. Fui convidado para essa primeira atuação, mas achei que aquilo não iria a lado nenhum.

Desdenhou dos seus colegas.

Pedro: Na cara, mesmo. Inventei uma desculpa esfarrapada que foi ter o casamento de uma prima, e não fui a esse primeiro concerto. Depois, como a quantidade de seguidores já era tal três meses depois, não se mudou o nome.

Já li que eram para aí uns 20 seguidores.

Tiago: Eram 15, os homens exageram sempre um bocado.

Pedro: Portanto, uma marca fortíssima consolidada no mercado e nas rádios, com cotação, em bolsa, e eu três meses depois tentei estragar, no fundo, esse elã todo que a banda já tinha e pedi para entrar. Isto após muita insistência deles…

Como é que, com as vossas vidas, arranjam tempo para o processo criativo para pôr o álbum de pé?

Ricardo: Com as nossas vidas suponho que esteja a falar do facto de termos outras profissões, tal como tanta gente no nosso país e no mundo que acumula mais do que uma profissão. Consideramos que temos duas profissões, não temos uma profissão e um hobby. São duas. A questão da composição vai surgindo em alturas em que estamos um pouco mais inspirados, e todos acabamos por ter algum tempo morto.

Mas conseguem juntar-se ou fazem muito uso dos telemóveis e por aí fora? O vosso grupo de WhatsApp deve ser muito curioso.

Tiago: Todas estas novas tecnologias vieram facilitar imenso esse processo criativo, desde uma ideia que se grava numa mensagem de voz a uma escrita que é feita no bloco de notas de um telemóvel e que partilha rapidamente com o resto do grupo. Mas às vezes chegamos ao cúmulo de não termos tempo de nos sentarmos todos a discutir ideias, de fazer muitas coisas em viagem para o trabalho, e às vezes à noite, para não acordar as crianças, dentro do carro. Gravar dentro do carro não é uma coisa muito rara. Chamo ao meu carro o Wangenzeco, é relativamente grande e felizmente dá para por uma guitarra lá dentro.

E as letras, há alguém que seja o cabecilha nessa matéria?

Pedro: É o apresentador da gala!

Tiago: A letra não surge exclusivamente da mente de uma pessoa. O que acontece é que, às vezes, há a ideia de um tema e isso pode ser o gatilho para criar uma história por trás. Depois há discussões normais sobre este e aquele verso, porque há ideias alternativas. É normal haver uma letra preferida, mas depois haver discussões paralelas.

As pessoas de Coimbra já o perdoaram por ter levado Lisboa para o vosso primeiro grande sucesso (P’ra Frente É Que É Lisboa)?

Tiago: É uma expressão popular, não é nada muito dirigido à capital. Gostamos de acreditar que, apesar de nos termos conhecido em Coimbra, que não somos propriamente exclusivos da nossa região. Se calhar numa fase inicial éramos um fenómeno muito local…

Ricardo: Chamaste-nos fenómeno?

O Miguel Araújo foi um dos primeiros a chamar a atenção para o vosso fenómeno em público, numa crónica na Visão.

Tiago: Mas o Miguel é uma pessoa demasiado generosa. A verdade é que nem somos todos de Coimbra: o Rui é de Carregal do Sal, o Ricardo é de Braga, o Pedro é de Águeda, o Mário é da Sertã. Só eu e o João é que somos realmente de Coimbra.

Acham que este ADN centro-norte do país se nota na vossa música?

Ricardo: O que é o ADN centro-norte?

Mário: Creio que não, até porque acho que tem muito mais a ver com as nossas influências musicais, que se calhar são muito mais abrangentes. Desde a música clássica ao pop, ao rock.

Tiago: É natural que o Pedro, que é da região de Águeda, onde existem muitas orquestras filarmónicas, e muitos músicos de rua, tenha uma cultura musical mais vocacionada para isso, e talvez isso se reflita na forma como introduzimos a percussão nas nossas músicas.

Como se definiriam? Como uma banda popular portuguesa?

Tiago: Não. Acho que já fomos mais orientados para a música tradicional, folclórica, digamos assim. Não quer dizer que não faça na mesma parte do nosso ADN, vai sempre fazer. Atualmente, e acho que este segundo disco reflete mais isso, a nossa tendência é aproximarmo-nos um pouco mais do pop, com tudo o que isso tem de bom e de mau, e isso também é perfeitamente subjetivo. A verdade é que o facto de trabalharmos com outros músicos e de termos, neste caso, uma produção do João Só, que é também nosso amigo e que acrescentou bastante ao disco, faz com que as nossas influências sejam um bocadinho moderadas por ele, e que ao mesmo tempo ele acrescente as dele. E ele é uma pessoa muito mais vocacionada para o pop rock, e portanto puxa-nos um bocadinho mais para esse ambiente. Isso não é de todo mau porque, no fundo, temos de procurar não nos esgotar muito dentro daquilo que são as nossas influências originais. Diria que, atualmente, somos uma banda de pop.

Mário: A sonoridade acaba por ser fruto do tipo de instrumentos aos quais temos acesso, e no início, sobretudo, só tínhamos acesso a instrumentos acústicos. Inevitavelmente, a sonoridade será mais madeira. Neste novo álbum acrescentámos alguns instrumentos como uma guitarra elétrica ou um teclado.

Pedro: Mesmo a bateria era um kit mais de percussão com elementos tradicionais que, no fundo, automaticamente acompanhou também instrumentos novos que foram chegando à banda e que também acompanharam essa evolução e essa sonoridade. A questão do estilo é difícil, e concordo em absoluto com o Tiago, mas também tem a ver com a heterogeneidade muito grande em termos de temas. Isso é algo que também acontece neste disco: continua a haver temas muito diferentes em termos de estilo entre si.

Tiago: Tanto temos uma valsinha, com a Coisas Tão Bonitas, como temos a Canção do Metro que é uma música mais pop-folk, como temos a Terra Gira que é declaradamente uma música pop.

E essas gavetas não vos preocupam muito.

Ricardo: De todo.

Rui: Em particular, neste segundo álbum, preocupámo-nos bastante em fazer coisas não muito focadas nem em estilos nem em instrumentos específicos, mas sim coisas que nos soavam bem. Se tínhamos que ter um teclado porque fazia ali falta para preencher um espaço, ou uma guitarra elétrica, púnhamos. Não nos preocupámos se estávamos aqui a acrescentar um elemento que não tivesse feito parte da nossa formação.

Acham que é disto que as pessoas também gostam em vocês, da naturalidade com que se aproximam da música?

Tiago: Acho que aquilo que provavelmente faz com o que público se ligue mais é que nós, de certa forma, caímos nisto um bocadinho por acaso. Excetuando o João, que é professor de música, não somos músicos de formação. Na forma de fazer música isto aproxima-nos mais do ouvinte do que da pessoa que estudou e faz música em função do ponto de vista teórico. Somos quase mais utilizadores do que pensantes. E, no fundo, se ouvimos tanta coisa diferente e se gostamos de todo o tipo de música, por que não havemos de o fazer? Por que há-de ser um problema ser heterogéneo ou variar entre música mais tradicional e música mais pop? Nunca nos quisemos orientar muito por um estilo, tocamos o que nos soa bem.

Há um fio condutor na vossa música: a língua portuguesa.

Pedro: Ouvimos estilos de música muito diferentes mas todos temos uma influência muito grande de artistas portugueses, e acho que isso marca obviamente a nossa admiração pela língua portuguesa, que achamos que é um instrumento muito bonito que podemos trabalhar e que surgiu muito naturalmente. Não foi uma decisão premeditada e assim se manterá enquanto nos sentirmos bem.

Tiago: O que não quer dizer que não tenhamos crescido a ouvir música estrangeira, e ainda ouvimos bastante e cantamos até informalmente, mas para o palco só levamos as nossas próprias canções.

Meia: E não só música estrangeira, também músicos portugueses que escolheram cantar noutras línguas.

Quando é que perceberam que o projeto tinha pernas para andar depois de, em 2013, se terem juntado para tocarem num sarau da irmã do Tiago?

Ricardo: Passados alguns meses foram aparecendo mais algumas músicas originais. Quando chegou a nossa agência, a Primeira Linha, e pouco depois a Sony, é que nos apercebemos e começámos a trabalhar com uma estrutura profissional. Isto um ano depois.

Pedro: Aí foi definida uma questão estratégica de continuidade, de termos o apoio profissional de alguém que nos iria ajudar a fazer as coisas da forma certa. Até aí era intuitivo, e continua a ser, mas passou a ser mais organizado. Até lá o que nos fazia continuar eram os concertos, porque gostamos de tocar ao vivo e daquela energia, da interação entre as pessoas. A banda conheceu-se a tocar em Coimbra de forma inusitada e esse espírito mantém-se até hoje.

Mário: Nós começámos, quase se pode dizer, como banda de auditório, porque tocámos em dois bares e depois o nosso percurso, pelo menos nos primeiros dois anos, foi quase sempre em auditório. A partir do momento em que chegou a agência e a Sony Music passámos a ir para o exterior, para festivais de verão.

Houve algum concerto que apontem como o momento em que sentiram mesmo que o jogo tinha virado, com toda a gente a cantar as vossas músicas?

João: Casa da Música.

Meia: Tivoli.

As opiniões dividem-se.

Tiago: A sala 2 da Casa da Música (2016) foi praticamente o grande concerto em que saímos de Coimbra. Foi anunciado como produção própria e, de repente, esgota. Abre-se uma segunda data e esgota também. E aí é que tivemos a noção de que, realmente, já havia gente no resto do país que consumia a nossa música e que tinha gosto nisso.

Há três anos vocês tinham aquele discurso brincalhão sobre o facto de serem um sucesso de vendas (destronaram Salvador Sobral nos tops), diziam que tinham muitos colegas a comprar CD’s e famílias numerosas. O que mudou?

Meia: Como passávamos, e passamos, muito tempo nos nossos trabalhos, não tinha bem noção da quantidade real de pessoas e de qual era a evolução. E depois nesses concertos de produção própria maior é que nos faziam pensar, aí é que se calhar começou a cair mais essa ficha.

Tiago: Se isso mudou alguma coisa? Não mudou, neste sentido: isto nasceu por acaso e o público é que nos foi puxando para fazer sempre um bocadinho mais. Ao início até tocávamos músicas que não eram nossas, e foi o público que perguntou: por que não escrevem as vossas músicas? E nós começámos a escrever. De repente, por que não vão ao Porto e a Lisboa? E nós fomos. Às vezes perguntam-nos: e por que não uma sala maior? E nós vamos. Essa noção do que as pessoas pediam criou-nos a responsabilidade de darmos mais e de pormos a mão na consciência e pensarmos que, se calhar, estávamos numa fase em que tínhamos que nos começar a preocupar mais. E de repente o espetáculo já não era só música, já tinham uma cenografia, técnicos de luzes. Mas o chip é o mesmo desde o início: não estávamos à espera de nada e fomos atrás daquilo que nos era pedido, e é isso que continua a acontecer.

Pedro: Para mim foi marcante termos a sorte de, logo desde o início, trabalharem connosco pessoas de um elevado nível, do melhor que temos cá. Pensámos que se tínhamos aquelas pessoas a trabalhar connosco e a acreditar em nós era um desperdício não aproveitarmos a oportunidade de podermos fazer ainda melhor. Foi um privilégio e foi muito familiar desde o início, por isso foi confortável essa transição de estarmos a trabalhar já a um nível profissional. Mas percebemos logo que o barco estava a ser maior.

O Ricardo há pouco dizia que vocês têm duas profissões, mas penso que a maioria das pessoas não terá. Muitas poderão ter um part-time e uma profissão. Entre a música e os vossos caminhos individuais profissionais, não há um que prevalece sobre o outro?

(Respondem em coro que não)

Tiago: Vemos isto como uma sorte incrível. Acho que falo por todos quando digo que tivemos a sorte de poder escolher como carreira aquilo que gostamos. E a música é uma espécie de segunda vida que nos foi dada a oportunidade de ter e que se tornou também numa profissão. Mas é com um gosto enorme que a podemos desempenhar. No fundo, temos duas profissões que nos fazem imensamente felizes. Não é fácil optarmos por uma e desistirmos da outra, sentimos a missão também de podermos ser felizes nas duas e de sermos bons nas duas, é a nossa busca.

Em todas as entrevistas que li vossas há um interesse acrescido pela vida dos elementos do grupo que são médicos. Como é que os restantes membros do grupo o veem?

Meia: Acho que é um interesse natural, dificilmente uma pessoa passa a vida toda sempre a precisar de um médico. É uma profissão que as pessoas conhecem de perto e muito acarinhada pela sociedade.

João: Acho que as pessoas têm curiosidade em saber como é possível conciliar e ter tempo para fazer concertos.

Meia: Por exemplo, a pessoa neste momento com menos flexibilidade de horários até sou eu, que sou engenheiro civil, mas como trabalho em empresas privadas a minha flexibilidade é um pouco mais limitada.

Mário: E não tens ninguém para te substituir.

Meia: Claro que eles fazem bancos de 24 horas, e as pessoas sabem disso. Mas nunca vi nenhuma maldade nesse interesse.

Mas todos para conseguirem fazer o que fazem precisam certamente de colegas, em cada uma das vossas profissões, que sejam compreensivos.

Tiago: Completamente. É que nós temos duas profissões, mas temos famílias.

E têm que dormir e por aí fora.

Pedro: O sono vai esperar vai ser o nome do terceiro disco.

Tiago: É óbvio que a gestão do tempo passa por nós, mas passa também muito pelas outras pessoas e pela compreensão delas. Acho que o facto de os nossos colegas e chefes e as nossas famílias perceberem tanto o quanto isto é importante para nós como passou a ser importante para muita mais gente para além de nós os seis faz com respeitem isso de forma diferente, e que tenham até um carinho especial pelo projeto. Os nossos colegas sentem eles próprios que fazem um bocado parte disto ao permitir-nos dedicarmo-nos o máximo. E as nossas famílias a mesma coisa. Os Quatro e Meia também são um bocadinho todas estas pessoas que nos vão ajudando. Quem vê um concerto nosso não imagina as mil trocas que foram feitas, as mil conversas que tiveram que acontecer, as mil negociações que a nossa agência teve que fazer com a própria entidade promotora a explicar por que é que só podemos naquele dia àquela hora. Se existe a banda à data e se tem a projeção que já tem muito se deve à capacidade emocional de todas estas pessoas.

Pedro: Sentimos o privilégio que é e o carinho de quem nos possibilita esta flexibilidade. Essas pessoas têm depois orgulho em que nós possamos fazê-lo, porque sabem que, quando voltamos às nossas profissões, estamos disponíveis a 100% e não abdicamos dessa parte.

E pessoas mais felizes são melhores profissionais…

Pedro: Sou médico de família e por isso lido muito de próximo com as pessoas, já trabalho no mesmo sítio há seis anos. Há uns dois anos tivemos três ou quatro concertos numa semana, o que para uma banda é normalíssimo, mas estar a chegar a casa de Mirandela às 4 da manhã e no outro dia às 8h00 estar a trabalhar… E então as pessoas diziam: «Hoje o doutor está cansado, mas teve concerto ontem!». Não a culpabilizar-me, mas do género: «Ainda bem que está cá».

Tiago: Sim, os comentários muitas vezes são do género: «Mas já aqui estás? Vi uma foto vossa no Algarve ontem à noite». As pessoas percebem que, às vezes, fazemos um esforço muito grande para nos nossos próprios trabalhos estarmos a 100%. Claro que quando estamos cansados, como toda a gente, custa. Mas estamos nos nossos trabalhos de alma e coração, não é só na música. Acho que as pessoas entendem isso e respeitam esse esforço.

Têm histórias caricatas nas vossas profissões? Por exemplo, estar numa obra e ter alguém a pedir para cantar, ou nos hospitais?

Meia: Já dei um autógrafo numa obra. Apareceu o dono e a mulher, com a obra a decorrer, e pediram um autógrafo.

Mário: Trabalho na produção de videoclipes e coisas desse género, e já me aconteceu várias vezes estar na gravação de um videoclipe de outras pessoas e virem ter comigo a perguntar se eu não fazia parte de uma banda.

Tiago: Já tive uma senhora que me pediu para adiarmos a cirurgia dela porque queria ir ver um concerto nesse dia. Era o nosso concerto! Ela não relacionou comigo, e também não lhe disse nada (risos).

Pedro: O casal de fãs mais velhote que tenho – o senhor tem 92 anos agora – chegaram uma vez à consulta com o filho, e o filho vinha todo orgulhoso para me dizer que o pai, quando ouvia rádio e sempre que passava uma música nossa, dizia: «Oh Maria, anda cá ouvir o doutor!». E a velhota é mouca (risos). Esta relação quase sem barreiras acaba por ser muito impactante para nós, não estávamos à espera.

João: Tenho alguns alunos cuja motivação para virem estudar violino foi exatamente verem e ouvirem um concerto dos Quatro e Meia. Acho piada porque, às vezes, as pessoas têm complexos com música clássica e deixam de os ter.

Dá aulas de mais instrumentos?

João: Dou de violino, bandolim e sou professor de educação musical.

Tiago: O João provavelmente não sabe, mas acontece ter pessoas que trabalham comigo que me perguntam: «Olhe, você tem algum amigo que dê aulas de violino? É que eu acho que os meus filhos têm aulas com o seu colega da banda!». Acho que o João dá aulas de violino a toda a região centro (risos).

Mário: Aquilo que o João disse em relação ao violino já ouvi também muitas vezes em relação ao acordeão. Se calhar algum dos melhores elogios que posso ouvir é alguém dizer-me: «Olhe, eu até nem gosto de acordeão, mas até gosto da forma como encaixa nos Quatro e Meia. Ali até se consegue ouvir!». (risos) É um instrumento com uma conotação muito popular e muito folclórica e se calhar às vezes até é difícil encaixar – atenção que não estou a denegrir a imagem do acordeão, estou só a explicar que o instrumento é associado a um estilo musical e não tem que ser.

O que seria preciso para deixarem as vossas profissões e dedicarem-se exclusivamente à música?

Tiago: Só vejo uma hipótese para deixar de ser cirurgião torácico, que é magoar-me nas mãos. E aí posso só cantar e não tocar guitarra, mas ainda assim fazia música. Não está nos nossos horizontes deixarmos as nossas profissões. Não é que esteja fora de questão, mas como nós gostamos do que fazemos e como sentimos que tocamos as pessoas desta forma, quer com o entretenimento quer quando vemos uma obra concluída, ou quando vemos os nossos alunos a progredir e a ultrapassarem o que ensinámos, ou um cliente que fica satisfeito com um videoclipe… Não faz sentido parar de fazer uma coisa que nos faz felizes. Claro que é aliciante pensar: vamos fazer da música carreira. Podia ser ao contrário, podíamos ser músicos e ter o desejo secreto de querermos ser engenheiros, médicos, o que fosse.

Meia: O reverso da medalha é igualmente válido.

Pedro: Continuamos a ter a esperança de que as pessoas, conhecendo as características da banda, também consigam compreender, e nos perdoem a limitação, em termos de disponibilidade.

Até agora não ninguém faltou a um concerto ou chegou imensamente atrasado?

Meia: O Ricardo até chegou um mês antes a um concerto, esqueceu-se que tinha de ir a Madrid.

Ricardo: Foi numa fase muito inicial da banda. A partir daí o Mário mostrou-me uma aplicação espetacular chamada Agenda Google e desde então sou um fiel utilizador.

Tiago: Às vezes penso nisto: até que ponto é que nós não somos como somos musicalmente porque também fazemos outras coisas? Não será isso que também nos traz a nossa essência? Se nos dedicássemos só à música isso iria levar-nos para um campo em que o as pessoas exigiriam de nós, e nós de nós próprios, era também muito diferente do que fazemos agora.

Ricardo: Mesmo o nosso processo de gravação. Imagino um músico a tempo inteiro que, todos os dias, acorda a pensar em música, ouve o que fez no dia anterior, não gosta e refaz.

Vocês estarão menos propensos a bloqueios de criatividade?

Ricardo: Por necessidade, talvez. Temos menos pressão para fazer. Durante este processo de gravação acabámos por nos juntar todos em determinados dias e fizemos a gravação do grosso das músicas em dois fins de semana. No final desses fins de semana ouvíamos em conjunto e pensávamos no que iríamos mudar, mas não tínhamos aquele tempo de esmiuçar e refazer, pelo que acabávamos por ser práticos.

Pedro: Tínhamos que ser cirúrgicos.

Ricardo: Isto pode ser bom e pode ser mau – é o que é.

Tiago: Acho que qualquer pessoa que esteja minimamente ligada à criação sabe que é preciso um travão a dado momento, porque senão não há qualquer organização mental para concluir nada.

Saiu agora o vosso segundo álbum. A longo prazo já têm planos pensados?

Ricardo: Este disco já era para ter saído no início de abril, mas por causa da pandemia foi atrasado e nesse período fizemos e incluímos uma música nova, que fazia todo o sentido. Além dessa música temos um punhado de canções na gaveta que gostaríamos, brevemente, quem sabe, de tira-las de lá.

Qual foi a música que acrescentaram?

Ricardo: Coisas Tão Bonitas. Acrescentámos porque fazia sentido por causa do período que estamos a passar, tivemos que deixar as outras porque caso contrário faríamos um CD duplo e isso já não se usa (risos).

Tiago: Essa música entra no álbum porque a própria letra está orientada para este período. Diz que temos muitas coisas para contar, coisas lindíssimas para fazer, mas foram adiadas. Um dia hão de vir cá para fora, há uma canção que ainda falta escrever. No fundo, é uma nota de esperança que quisemos deixar.