A diretiva da secretaria-geral do Ministério da Defesa que visa eliminar expressões sexistas e homofóbicas no seio das Forças Armadas foi anulada, esta sexta-feira, por João Gomes Cravinho, não sem antes ter causado a indignação dos militares – que têm vindo a exigir das chefias uma resposta ‘severa’ desde que o seu conteúdo foi tornado público. Numa primeira reação, mais a ‘quente’, esteve mesmo em cima da mesa a possibilidade de se avançar para uma manifestação para contestar a diretiva, mas, apurou o SOL, esta possibilidade já terá sido descartada pelos militares.
O documento intitulado ‘Diretiva sobre a Utilização de Linguagem Não Discriminatória’ foi emitido pela secretaria-geral da Defesa e enviado aos serviços centrais do Ministério, ao Estado-Maior-General das Forças Armadas e aos três ramos militares (Exército, Marinha e Força Aérea). Segundo a Defesa, a diretiva tem como objetivo a «utilização de uma política de comunicação inclusiva em todos os documentos oficiais, seja na forma escrita, na oralidade e na imagem». O documento – que cita recomendações do Conselho da Europa, da NATO e resoluções do Conselho de Ministros – prevê que os militares utilizem uma comunicação com «termos neutros» que seja «sensível ao género» e evite a «utilização de linguagem discriminatória». Expressões como «deixa-te de mariquices», «porta-te como um homem» ou «pareces uma menina» são dadas como exemplos do que passa a ser proibido a partir deste momento.
Esta diretiva surge no âmbito do plano setorial da defesa nacional para a igualdade, 2019-2021, mas nas Forças Armadas – um universo tendencialmente masculino – nem sequer conseguiu colher o apoio das… mulheres. O descontentamento será praticamente unânime, mas, num primeiro momento, têm sido as próprias mulheres militares a manifestarem mais abertamente, junto das chefias, o desconforto e a indignação face ao conteúdo do texto. E exigindo mesmo que a situação não caia no esquecimento sem uma resposta concreta e firme.
Ao SOL, uma oficial no ativo (que pediu para não ser identificada) admite que quando viu o texto pela primeira vez julgou «tratar-se de uma brincadeira». «Fiquei estupefacta ao ler aquele documento», recorda. A militar considera que «ao tentarem ensinar-nos a falar, o que estão a dizer-nos, a mim como mulher, é que sou uma ‘coitadinha’ e, aos meus restantes camaradas homens, que são uma cambada de ‘grunhos’ mal-educados». «Nós sabemos falar, temos valores e princípios. Somos pessoas como as outras», afirma.
Com uma carreira longa e respeitada, a militar afirma que «o documento só pode ter sido feito por quem não conhece o meio» e deixa dúvidas se «alguém das Forças Armadas tenha sido sequer ouvido quando estavam a escrevê-lo». «As Forças Armadas são talvez o setor da sociedade onde, de facto, existe mais equidade. Onde eu, enquanto mulher, posso ter as mesmas funções que um homem, cumprir as mesmas tarefas e até receber o mesmo ordenado. E agora pergunto: será esta a forma como o Ministério da Defesa vê os militares portugueses? Ou esta diretiva também vai ser alargada à restante função pública? Será que vai ser enviada à PSP, aos inspetores tributários ou até mesmo aos deputados da Assembleia da República?», questiona.
A indignação entre os militares tem, aliás, sido transversal – as críticas vêm de elementos no ativo, na reserva ou na reforma. Dentro de portas, têm sido as mulheres a assumirem maior indignação, pois consideram que são as principais envolvidas (e prejudicadas) nesta questão.
Os dados mais recentes do Ministério de João Gomes Cravinho, referentes a setembro, indicam que servem nas Forças Armadas portuguesas 2783 mulheres (o que representa 11,4% do total de 24 mil militares). Neste momento, estão todas no ativo. E é exatamente por se sentirem ‘obrigadas’ aos deveres militares que têm optado por não declarar publicamente o que pensam.
«Esta diretiva é, antes de mais, humilhante para as mulheres. Eu não quero ser levada ao colo por ser mulher. Quero ser reconhecida pelo meu mérito e pelo meu comportamento. Pior que a discriminação negativa é a discriminação positiva. No primeiro caso, tenho a lei do meu lado, mas, no segundo, não tenho como a justificar. As mulheres militares que integram as Forças Armadas ficam, desta forma, numa situação muito difícil perante os seus camaradas homens», diz ao SOL.
Esta polémica promete chegar a Marcelo Rebelo de Sousa, depois de o presidente do conselho nacional da Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA), tenente-coronel António Costa Mota, ter admitido que «gostava» que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, por inerência comandante supremo das Forças Armadas, «assumisse uma posição» e «tivesse uma reação» perante a polémica.
Sobre a diretiva, o presidente da AOFA é taxativo: «É uma patetice, uma baboseira». «O documento é inadequado e desajustado. Por um lado, porque se há setor onde existe, de facto, equidade é nas Forças Armadas, onde as mulheres têm as mesmas funções, cumprem as mesmas tarefas e recebem o mesmo ordenado que os homens. Por outro lado, existem muitas outras preocupações para que um Ministério esteja preocupado com isto», diz.
Contactado pelo SOL, o Ministério da Defesa esclareceu por e-mail que o texto enviado pela secretaria-geral não se trata de uma versão final da diretiva. O Ministério de João Gomes Cravinho confirmou que, neste momento, continua a contar com os contributos dos vários intervenientes, antes de fechar o documento. «Esta proposta de diretiva sobre utilização de linguagem não discriminatória insere-se no plano setorial da defesa nacional para a igualdade, 2019-2021, tendo a sua elaboração ficado sob a alçada da secretaria-geral do Ministério da Defesa Nacional, que a enviou para todas as entidades da esfera da defesa nacional, serviços centrais, Estado-Maior-General das Forças Armadas e ramos, no sentido de recolher contributos e melhorias. Só após audição de todos os envolvidos e integrados os contributos considerados pertinentes, a referida diretiva se assumirá como um documento final», lê-se na nota.