Com as eleições de 3 de novembro a aproximarem-se, após umas meras três noites hospitalizado, Donald Trump aproveitou o regresso à Casa Branca para cimentar o estatuto de herói aos olhos dos seus apoiantes. Ainda infetado, fortemente medicado, aparentemente com falta de ar, o Presidente subiu à varanda, sobre um relvado iluminado e decorado com bandeiras. Fez uma saudação militar, tirou a máscara e posou para a câmara. “Sinto-me muito bem! Não tenham medo da covid. Não deixem que domine a vossa vida”, tinha escrito no Twitter.
Críticos e especialistas de saúde pública horrorizaram-se com o descuido e o menosprezo por uma doença que matou mais de 215 mil pessoas nos EUA. Os fiéis exultaram, e por 100 dólares até já podem comprar moedas comemorativas onde se lê “Trump vence a covid-19”. O objetivo é refletir “mais do que uma sugestão das suas qualidades de super-herói”, nas palavras de Anthony Giannini, gestor da loja White House Gift Shop, à USA Today.
Mesmo no hospital, o Presidente estava bem consciente de quão galvanizador para os seus apoiantes poderia ser o regresso à Casa Branca. Passou o tempo todo atento à cobertura mediática, a desdobrar-se em sessões fotográficas, receoso de passar uma imagem vulnerável e a planeando como dar a volta.
“O Presidente repetidamente afirmou que quando ele recuperar do coronavírus poderá apresentar-se a si mesmo com o seu conquistador, tanto pessoalmente como politicamente”, contaram fontes próximas ao Daily Beast.
Dias após saber-se que fora infetado, a sua campanha já publicava anúncios referindo-se ao Presidente como “um verdadeiro lutador”, um “líder forte”. O senador republicano Kelly Loeffler tweetou um vídeo editado de um lutador de boxe com a cabeça de Trump a esmurrar outro, cuja cabeça fora trocada por uma partícula de covid-19. “A covid não teve hipótese contra Trump”, lia-se.
“Se o Presidente voltar a fazer campanha, ele será um herói invencível, que sobreviveu a cada truque sujo que os democratas lhe atiraram e ao vírus chinês também”, vaticinou a jornalista Miranda Devine, num artigo de opinião no New York Post, retweetado por Trump. Se esta estratégia funcionará ou não é uma questão em aberto.
Por um lado, quase dois terços dos eleitores desaprovam a gestão da pandemia por Trump, segundo uma sondagem recente da Ipsos. Muitos não esquecem as suas reticências quanto às medidas mais básicas, como o uso de máscara e o distanciamento social, o desprezo pela ciência ou a insistência na reabertura do país.
Por outro lado, a fadiga e a frustração quanto à pandemia é natural, como salientou a OMS (ver página ao lado). “A perceção da ameaça do vírus pode diminuir à medida que as pessoas se habituam à sua existência – mesmo se os dados epidemiológicos mostram que o risco, de facto, pode estar a aumentar”, lê-se num relatório recente da organização.
“É provável que a perceção das perdas resultantes da resposta à pandemia (confinamento, restrições) aumente com o tempo”, continuava o relatório. “Para algumas pessoas, o equilíbrio pode mudar e a perceção dos custos da resposta começar a pesar mais que a perceção dos riscos do vírus”.
Trump não seria o primeiro líder a tirar ganhos políticos da sua infeção. Jair Bolsonaro, que sistematicamente menosprezou a covid-19, chamando-lhe de “gripezinha”, adoeceu no início de julho, mas após recuperar sem complicações teve um pico de popularidade, passando de uma taxa de aprovação de 32% para 37%, a mais alta que teve, segundo o Datafolha.
Já Trump escreveu ontem nas redes sociais que “a época da gripe está a chegar”, questionando: “Vamos fechar o nosso país?”. O Facebook e o Twitter assinalaram o post como informação falsa, por mencionar erroneamente que chegavam a morrer 100 mil pessoas nos EUA de gripe por ano – o máximo foi 61 mil – e que a covid-19 era menos letal do que a gripe.
Incerteza Mesmo após o regresso à Casa Branca, persistem as dúvidas quanto ao estado de saúde real do Presidente norte-americano. Não seria a primeira vez que a sua equipa médica mentia ao público – negaram que tivesse precisado de oxigénio e depois admitiram-no – e está a tomar medicamentos muito mais fortes do que seria de esperar num caso ligeiro de covid-19.
Entre os medicamentos está o regeneron, um cocktail experimental de anticorpos, não aprovado pelas autoridades de saúde, bem como dexametasona. Este esteroide é reservado para casos muito graves, por diminuir inflamações nos pulmões, uma complicação comum, ao mesmo tempo que diminui a resposta natural do corpo ao vírus. Outros efeitos secundários incluem dificuldades cognitivas, irritabilidade, ansiedade e mudanças rápidas de humor.
Para muitos médicos, o tratamento recebido por Trump mostra um claro síndrome de VIP. “Este termo aplica-se quando alguém muito importante recebe um tratamento super especial, acima e para lá do que o público normal receberia”, explicou David Hamer, professor de Medicina em Boston, à NBC. “Ele está a receber um tratamento muito agressivo”.