Na última semana foram batidos os recordes semanais de novos casos de covid-19 e é na região Norte que o agravamento da situação epidemiológica é mais notório. Analisando os casos reportados entre segunda-feira e domingo (o balanço de ontem), registaram-se em todo o país 8028 novos casos de infeção, contra 5856 na semana anterior. Mas o que mais se destaca na semana que passou é o aumento dos casos na região Norte, quando até aqui de Lisboa e Vale do Tejo representava a maioria das novas infeções.
No sábado, dia em que o país bateu o recorde de novos casos reportados em 24 horas, a região Norte registou quase mil novos casos (920). E analisando toda a semana, o Norte registou um aumento de 76% no número de casos face à semana anterior, num total de 4065 novos casos – quando a nível nacional a subida foi de 37% e na região de Lisboa o aumento foi de 9% (3046 novos casos). Os casos reportados este domingo, divulgados ontem, voltam a fazer soar alarmes: geralmente é um dia com menos notificações, dado muitos laboratórios estarem fechados e serem feitos menos testes que nos dias úteis, mas foram ainda assim reportadas 1279 infeções. No domingo da semana passada tinham sido reportados 734 novos casos.
Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, admite que, na semana passada, possa ter havido um efeito acrescido na diminuição do diagnóstico por ter havido um fim de semana prolongado, mas reconhece que os sinais são de agravamento da situação epidemiológica no país, nomeadamente no Norte, onde não encontra para já uma explicação para esta maior subida. “Teremos de esperar pelos próximos dias”, afirma, reiterando no entanto que a subida dos casos está a levar a uma maior pressão sobre as equipas de saúde pública. “Está a ser dada prioridade aos inquéritos epidemiológicos, mas com dificuldades, que levam a que haja menos capacidade nas equipa para manter a vigilância de contactos”.
Sem novas medidas para conter a transmissão e reforço de meios para lidar com o aumento de casos, o médico sublinha que se está a trilhar um caminho em que poderá ser necessário um novo confinamento, o cenário que tem vindo a ser afastado pelo Governo. Ontem, na conferência de imprensa da Direção Geral da Saúde, o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde António Lacerda Sales sublinhou que existe capacidade nos hospitais. “O confinamento é tudo o que não queremos”, sublinhou.
2000 casos podem ser atingidos esta semana A semana deverá bater novos recordes. Para Ricardo Mexia, perante a atual tendência, é plausível que o país chegue esta semana ao patamar dos 2000 casos, o que aumentará a pressão sobre o sistema de vigilância e sobre os hospitais.
Óscar Felgueiras, matemático especialista em epidemiologia da Universidade do Porto, que faz a modelação da epidemia no país desde março, considera também que é um cenário possível. “Num cenário relativamente otimista devemos passar a média de 1500 casos diários ao longo da semana. É perfeitamente plausível passarmos esta semana esse patamar (2000 casos) e se tal não acontecer não será por muito”, diz ao i o investigador, alertando mesmo que, perante valores tão elevados, “o número de casos detetados pode começar a ficar aquém da realidade. A positividade nos testes tem aumentado consistentemente, o que poderá ser um indício de uma testagem menos ampla”.
No final da semana passada, a ministra da Saúde indicou que, no dia com mais testes feitos até à data (7 de outubro), 8% tinham dado positivo, quando até aqui Portugal tem estado abaixo do patamar de 5% de positividade.
Norte com crescimento sem precedentes Óscar Felgueiras explica que, apesar de a evolução do número de casos estar relativamente dentro das previsões, verificou-se um agravamento no final da semana, patente nos dados dos últimos dias. E salienta a trajetória a Norte: “Olhar apenas para os números de um dia não é o melhor indicador da situação, ainda que seja sintomático do quadro geral. No entanto, há que sublinhar que a região Norte tem agora um crescimento sem precedentes. A incidência está a um nível semelhante ao máximo atingido no pico de abril. A diferença é que agora não há confinamento pelo que o número de casos vai continuar a aumentar”, alerta.
O investigador começa por explicar que a região tem tido um crescimento sustentado nos últimos dois meses, visível na evolução do RT (o indicador que calcula a taxa de reprodução do vírus e dá uma ideia da tendência de crescimento da epidemia). É no Norte que está acima de 1 há mais dias. “Desde a última semana de setembro existe um agravamento notório tendo o RT da região passado de um valor próximo de 1 para 1,29. Esta subida sustentada do RT configura um crescimento acima de exponencial”, diz Óscar Felgueiras.
Quanto a explicações para o Norte voltar a ter um ritmo de crescimento superior, acredita que não se pode dever apenas a um fator isolado, mas sim a uma conjugação desafortunada. “Existe incumprimento de regras tanto por não infetados como por infetados. Existe maior circulação de pessoas com a retoma da atividade, início das aulas, regresso de turistas. O tempo mais frio também pode ser um fator com influência, pois é bastante provável que o bom tempo do início de setembro tenha funcionado como travão e criado a falsa sensação de melhoria”, diz.
O Governo apontou para esta semana novas medidas e tem havido vários apelos no setor da saúde, da organização do sistema de saúde ao uso de máscara. Para Óscar Felgueiras, a atual situação epidemiológica justificaria também que se começasse a equacionar priorização na testagem quer no atendimento de queixas por covid-19, antevendo que possa haver em breve limitações perante a subida de casos. “Deve-se avaliar as linhas de defesa que temos e que estão em causa. A capacidade de testagem não será ilimitada e em breve poderá ter de haver priorização de testagem. A capacidade de controlar as cadeias de transmissão a partir dos inquéritos epidemiológicos já está comprometida. A capacidade de internamento e de oferta de cuidados médicos também se aproxima rapidamente de um patamar que impedirá a garantia de assistência universal”, alerta, defendendo também um reforço da sensibilização da população. “Perante isto, urge equacionar rapidamente medidas que possam ter impacto ao nível do comportamento da população. Claramente, a mensagem não tem passado de forma eficaz”.
Sem noção do risco O investigador sublinha que, neste momento, existe uma falta de noção geral do risco atual. “O facto de muitos dos novos casos concentrarem-se nos mais jovens pode dar a sensação de que as coisas não estarão assim tão mal. No entanto, a sociedade não está compartimentada e, apesar do relativo sucesso de proteção dos mais velhos, podemos estar a aproximarmo-nos do ponto em que o sistema de saúde fica de tal modo sobrecarregado que não consegue dar resposta. E aí não serão apenas os mais velhos a sofrerem as consequências”, reforça.
Nesta última semana, os dados disponibilizados pela DGS mostram que foi na faixa etária dos 20 anos que os casos mais aumentaram (um aumento de 61% face à semana anterior). A maioria dos casos continua a verificar-se abaixo dos 50 anos de idade, mas as maiores subidas depois dos jovens dos 20 anos 30 foram nos grupos entre os 40 e 60 anos. O peso dos contágios nos idosos com mais de 80 anos, que tem vindo a aumentar, diminuiu ligeiramente, mas por outro lado verificou-se uma subida de 18% nos casos entre os 70 e os 79 anos. Ao todo verificaram-se em todo o país 908 casos acima dos 70 anos de idade, mais 64 casos que na semana anterior.
Em termos de evolução por concelhos, as maiores subidas de casos na última semana verificaram-se em Lisboa e no Porto, que pela primeira vez depois do desconfinamento passou os concelhos com mais casos da área metropolitana de Lisboa como Sintra e Loures e onde os hospitais estão a sentir já maior pressão.