A História ainda não acabou, mas talvez se tenha tornado, nas suas súbitas repetições, um tanto enjoativa, como a sensação de ir a bordo de um barco sujeito à trepidação de marés que, longe de causarem verdadeiros nervos, de nos darem a provar uma sensação de receio aventuroso, apenas causam mal-estar, desgosto e, por fim, desinteresse. Ninguém sabe muito bem como reagir à bestialidade triunfante dessas novas figuras de um mal mais irritante e idiota do que propriamente aterrador. E isto mesmo talvez seja o seu maior perigo, o não nos darmos conta quando um fenómeno perturbador deixa de ser um mero fogo de palha tornando-se uma tão pavorosa quanto relevante força política. “Sem dúvida, na época mediática, muitos acontecimentos só existem porque se fala deles”, diz-nos Claudio Magris, e o pior é que, por vezes, mesmo uma aparente boa notícia, apenas dá força a uma trama falsificada. Talvez porque o maior perigo não venha dos vómitos nazis e fascistas que, ciclicamente, vão ganhando eco, mas de uma época sujeita a um nivelamento brutal e totalitário do mundo, uma época “em que se dedica igual atenção a Kant e às missas negras ou a outras imbecilidades” e em que, por isso, “é cada vez mais difícil compreender a consistência real – desde que tal adjectivo ainda tenha algum sentido – de qualquer fenómeno.”
Mas então, qual é a notícia? Na Grécia, chegou por fim o veredicto do tribunal penal de Atenas que parece ter esmagado de vez o partido neonazi Aurora Dourada, condenando a 13 anos de prisão o seu líder, Nikolaus Michaloliakos, e os restantes seis membros da direcção, isto uma semana depois de terem sido declarados culpados por dirigirem uma “organização criminosa”. O julgamento que chegou ao fim na quarta-feira é tido como um dos mais importantes da história política grega, sinalizando o fim de um período particularmente conturbado na sequência da crise económica de 2008, com a irresponsabilidade das instituições europeias a permitir que este partido, à semelhança de outras formações oportunistas, se aproveitassem do descrédito da classe política tradicional, e das forças do centro, para obterem projecção com mensagens xenófobas. Em 2012, o Aurora Dourada chegou a ser a terceira maior força política, conquistando 18 lugares no Parlamento grego.
Após cinco anos e meio de audiências, nas quais foram ouvidas centenas de testemunhas, o tribunal penalizou duramente não apenas os dirigentes mas um total de 68 pessoas ligadas àquela formação, que, num veredicto que a Presidente da República Katerina Sakellaropoulou descreveu como “histórico”, deu como provadas uma série de acusações contra este grupo paramilitar, incluindo os ataques a refugiados e migrantes nas ruas e praças de Atenas e do Pireu, que culminou, em 2013, com os homicídios de um jovem iraquiano e do rapper e activista Pavlos Fyssas. Foi este assassinato que desencadeou o processo, e Yorgos Rupakiás, foi considerado culpado do crime, e recebeu uma sentença de prisão perpétua pelo homicídio e ainda 14 anos por pertencer àquela organização criminosa e por outros crimes.
Quanto ao líder, Nikos Michaloliakos, conhecido como o “pequeno Führer”, dos 13 anos a que foi condenado há que descontar os 18 meses que passou já na prisão de segurança máxima de Korydallos. Esta cumpriu, de resto, um papel decisivo na sua formação, pois foi uma espécie de quartel-general na embrulhada de ideologias e orientações paranoicas que estão por trás do seu percurso na extrema-direita. Com uma licenciatura em Matemática, aparentemente não se lhe conhece qualquer profissão. E, aos 62 anos, o perfil deste patego é o que basta para mostrar a infantilidade e até o anacronismo dessas teses que culpam os males do mundo (e da Grécia) numa conspiração internacional encabeçada pelos bodes expiatórios e os bichos papões do costume: judeus, imigrantes, banqueiros e o diabo a sete. Se numa hora, Michaloliakos não consegue disfarçar a sua admiração por Hitler, ao ponto de ter sempre por perto um exemplar do “Mein Kampf”, e de o mimetizar nos seus discursos, sempre num registo vociferante, levando ao limite a sua voz esganiçada e recorrendo amiúde a uma retórica belicista, na hora seguinte tenta provar o seu furor patriótico, sem conseguir, no entanto, conciliar a admiração por Hitler com a brutal ocupação nazi que, em alguma medida, pesa ainda na fragilidade política e económica de um país que mal se reergueu da Segunda Guerra. Seja como for, o que a investigação conduzida pelo procurador Haralambos Vourliotis deixou claro é que a formação por si fundada há 40 anos, a partir do momento em que conquistou 426 mil votos nas legislativas de 2012, viu os seus dirigentes mais empenhados em sacar algum numa série de esquemas, enquanto apareciam armados até aos dentes, brandindo as suas insígnias (o símbolo do partido é um antigo meandro grego, o qual se assemelha bastante à suástica), e dizendo-se um grupo de cidadãos preocupados com a sua pátria num período negro, acirrando assim os sentimentos anti-imigração.
Voltando à prisão de onde tão cedo Michaloliakis não deverá sair, foi ali que começou a sua ascensão nos movimentos extremistas. Com apenas 16 anos, depois de participar nos protestos no exterior da embaixada britânica em Atenas, tinha já visto o interior de uma cela, mas foi só em 1976, após ter participado no espancamento dos jornalistas que cobriam o funeral de Evangellos Mallion, um torturador da junta militar, que passou um período em Korydallos, regressando dois anos mais tarde, ao tomar parte num ataque à bomba num cinema da baixa da capital frequentado por militantes de esquerda e onde passavam filmes soviéticos. Fez os possíveis por se graduar, ganhando cadastro, impressionando os coronéis que derrubaram o regime democrático num golpe em 1967, instaurando um regime de repressão e terror que, ao longo de sete anos, levou muitos gregos à cadeia, com uma sucessão de espancamentos e mortes até uma revolta de estudantes ter galvanizado a opinião pública que, finalmente, afastou a junta militar do poder. Um desses coronéis, Georgios Papadopoulos, tomou Michaloliakos como seu discípulo, e, em 1984, confiou-lhe a secção juvenil do partido de extrema-direita EPEN, que o coronel fundou quando ainda estava na prisão. Foi esse convite que marcou o fim da revista “Chrysi Avgi” (Aurora Dourada), a qual Michaloliakos começou a editar em 1980, e cujos textos terminavam com a saudação “Heil Hitler”. Convém acrescentar que a sua segunda passagem por Korydallos foi bastante breve, isto porque o futuro Führer grego viu a sua sentença reduzida ao denunciar alguns dos seus parceiros no ataque bombista.
Em 1985, depois de o EPEN não ter conseguido mais de 2% dos votos nas eleições europeias (o que, ainda assim, lhe valeu um dos 24 assentos da Grécia no Parlamento Europeu), Michaloliakos abandonou o partido e fundou o Aurora Dourada, o qual só em 1993 foi oficialmente registado como um partido político. Em 2005, depois de não ter tido melhor sorte nas eleições, acabou absorvido pela Aliança Patriótica. Uns anos depois, reconhecendo uma oportunidade na instabilidade gerada pela crise económica, o partido reemergiu e, em 2009, o seu líder deu por si eleito para o conselho municipal de Atenas. Foi ali que, depois de as coisas terem azedado numa disputa com o presidente da câmara, causou estardalhaço ao fazer a saudação nazi.
Depois do sucesso em 2012, com um programa eleitoral onde era difícil discernir mais do que uma medida concreta – “varrer os imigrantes” para fora da Grécia –, o partido ainda se aguentou nas eleições de 2015, mantendo-se como a terceira força política, mas à medida que o processo em tribunal ia avançando, e tendo os procuradores contado com os testemunhos de antigos membros do partido que vieram confessar os seus actos e mostrar-se arrependidos, o Aurora Dourada começou a afundar-se, acabando por se desfazer entre a falta de verbas e as lutas internas, sendo dizimado nas eleições de 2019, em que não conseguiu eleger qualquer deputado. Na antologia dos desaforos e imbecilidades que o regime mediático, em nome das audiências, não só tolerou como amplificou, ficam, não só a intervenção do antigo porta-voz Ilias Kasidiaris num debate televisivo em 2012, em que depois de ter atirado um copo de água para uma deputada, quando reagiu indignada, este deu-lhe dois violentos estalos, mas também as declarações do líder afirmando que “não houve crematórios, nem câmaras de gás”, e que o Holocausto, portanto, não passa de uma tremenda encenação, e, especialmente, a patética sessão em que, depois da vitória do partido em 2012, quando Michaloliakis entra na sala, levando, como de costume, os restantes membros do partido a levantarem-se em sinal de respeito, terem estes exigido aos jornalistas que fizessem o mesmo. Os que o recusaram, foram obrigados a sair da sala. Nessa sessão, Michaloliakos disse. “É hora de terem medo. Tentaram que eu desaparecesse, mas eu venci-vos.”
A hora mudou, mas se a Grécia precisou de um julgamento de cinco anos e meio, depois de dois homicídios e tantas outras agressões para lhe pôr um fim, o risco maior é perceber que “estamos numa época em que, como tinha previsto Dostoievski, ‘tudo é permitido’, e a solidariedade e o racismo se tornam cada vez mais duas opções de igual direito, como as opiniões contrapostas lado a lado nos jornais”, diz-nos Magris. E no mesmo artigo publicado há 20 anos no “Corriere della Sera”, frisava que, embora não acreditasse que o fascismo pudesse voltar a tomar conta da Europa, “se assim acontecesse, receio que se deparasse com pouca resistência”. “Tem-se a sensação de que veio a faltar aquele ethos compartilhado que une os que crêem na liberdade e na humanidade e torna mais fácil, quase inevitável, a cada um resistir ao Leviatã, quando é necessário. (…) Esta barragem contra o mal, este exército, hoje em dia talvez não existam.”