Proponho a cada leitor que faça um pequeno exercício: olhe para cada um dos objetos que integram o seu lar, desde os da cozinha, da sala de refeições e de estar, no escritório/biblioteca, casa de banho, os artigos de desporto e oficinais guardados na despensa/garagem, etc., e não esqueçam os objetos imateriais que constam dos livros, das cassetes e CD’s, em tudo o que vêm nos filmes e televisões; contabilizem todos os alimentos, vindos daqui e dali, que comeram ao longo da vida, em casa ou ‘fora’, e mais ‘os copos’ bebidos em bares e discotecas; e reparem na beleza da cidade, na sua arquitetura, nos ajardinamentos e parques, mas também nos sistemas de água e esgotos nas infraestruturas viárias, de internet e TV cabo. Não se esqueçam dos familiares, dos professores, do pessoal da saúde e dos amigos que, com os seus cuidados, viabilizaram a vossa vida e a vida dos vossos filhos.
Talvez que, em termos médios, cerca de 5 a 10 milhões de pessoas, do Minho ao Algarve, das Áfricas, das Américas, das Ásias, enfim de todo o mundo, tenham participado diretamente, oferecendo a sua presença e esforço, para que cada um de nós ‘tenha o que tem’, para que cada um de nós ‘tenha chegado até hoje nas condições em que está’.
Sim, a cooperação entre os humanos era mais limitada (em número de participantes) quando vivíamos em grupos de caçadores-recoletores com 150-200 pessoas. A amplitude da cooperação foi sucessivamente aumentando, tanto pelas trocas (’comércio’) como pela integração dos vários grupos em comunidades mais vastas. Sou ainda do tempo em que os algarvios quase só consumiam o que se produzia no Algarve; o mesmo para os alentejanos, beirões ou transmontanos. As estradas e a eliminação de ‘portagens’ e ‘alfandegas’ internas possibilitaram que os portugueses consumissem quase só o que se produzia em Portugal (e colónias). (Ao que se conta, o rei D. Carlos, navegando no seu iate ao norte do Porto, encontrou uns pescadores e perguntou-lhes: «Vocês são portugueses?»; os pescadores responderam-lhe: «Não, somos da Póboa do Barjim»).
Hoje a vida de cada um está assente na cooperação ao nível de continentes e de todo o planeta. A sociedade humana são 7 biliões de pessoas a cooperarem uns com os outros. Sim, porque as crianças e os velhos também contribuem para a felicidade dos outros, também são cooperantes e não, como alguns podem pensar, ‘atrapalhanços para a vida’ (só para algumas partes dos orçamentos de alguns Estados que gostariam de aumentar as participações para os armamentos, as polícias e as prisões).
A questão social, a questão económica e a questão política não são exercícios mentais com figuras simbólicas (conceitos, mitos, teorias e ideologias) sobre a ‘direita’ e a ‘esquerda’, ‘conservadores’ e ‘progressistas’, mais ou menos ‘democráticos ou totalitários’, etc. Essa conversa toda, muitas vezes brilhantemente intelectualizada, que nos separa, que nos divide, que nos opõe, que nos exclui, é a cortina de fumo que esconde uma questão muito simples: Como é que o ‘produto global’ desta ‘grande empresa humana’ de 7 biliões de pessoas é distribuído pelos seus integrantes, isto é, com que parte fica cada um. Neste particular admitimos que ‘não sendo todos iguais’, alguns ‘poderem ficar com mais um bocadinho que os outros’.
O que se passa, porém, é uma escandaleira, uma injustiça, uma exploração sem justificação de qualquer espécie.
Isto tem de acabar, seja lá como for, antes que o demónio nos leve a todos à perdição.
Estou contigo, Papa Francisco, com a tua nova carta encíclica Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e a amizade social: por uma sociedade humana baseada na ética, que inclui o amor, a partilha e a justiça.
P.S. – Marx definiu a contradição fundamental do capitalismo como a existente entre o caráter social da produção e o caráter privado da apropriação.