Como todos os anos acontece nesta altura, começou oficialmente a época de gripe sazonal. De acordo com o boletim semanal de vigilância epidemiológica do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge divulgado esta quinta-feira, registou-se nesta última semana um caso positivo para o vírus da gripe do tipo B, depois de até aqui não haver ainda indício de atividade gripal no país. Houve também mais consultas com quadros clínicos identificados como síndrome gripal.
A taxa de incidência de síndrome gripal na semana 12 a 18 de outubro foi de 12,8 por 100.000 habitantes, revela o boletim do INSA, o que é considerado uma “atividade esporádica” mas significa que agora é certo que o vírus está a circular no país. A estimativa é de 1280 casos de gripe no país na última semana. Todos os anos milhares de portugueses contraem esta e outra infeções respiratórias, de modo especial no inverno. O impacto é mitigado pela vacinação.
Até ao momento não foi reportado nenhum caso de doente com gripe internado em cuidados intensivos pelas 21 unidades que reportam dados ao INSA, mas é esperado que tal venha a acontecer. No ano passado, em que a época de gripe foi moderada, houve 124 doentes diagnosticados com gripe internados em cuidados intensivos.
Como se vigia a gripe num ano com covid-19?
Estes boletins do INSA não são novidade este ano, nem a Rede Médicos-Sentinela que está por trás deles. Todos os anos o Instituto Ricardo Jorge faz a monitorização semanal da atividade gripal no país, para perceber a diversidade dos vírus a circular, que podem determinar uma época de gripe mais ou menos agressiva, mas também a evolução da pressão sobre os serviços de saúde e mortalidade. As sentinelas são, na primeira linha, os médicos de família, que recebem doentes com sintomas como febre e queixas respiratórias. E depois as unidades de cuidados intensivos que reportam informação sobre os casos mais graves de pneumonia associada a infeção com o vírus da gripe.
Este ano, com o SARS-COV-2 a circular ao mesmo tempo, e queixas respiratórias a serem encaminhadas para locais de atendimento da covid-19, houve alterações no sistema.
Ana Paula Rodrigues, médica de Saúde Pública no Departamento de Epidemiologia e coordenadora da Rede Médicos-Sentinela do INSA, explicou ao i que os médicos que atendem os doentes com quadro clínico de infeção respiratória, com base na história clínica e epidemiológica e fatores de risco, vão prescrever os exames mais adequados e aqui vão entrar necessariamente mais testes de despiste do vírus da gripe do que no passado. “Além dos testes de SARS-CoV-2 que estão a ser prescritos aos doentes com infeções respiratórias agudas, em algumas circunstâncias o médico poderá fazer prescrição do teste para diagnóstico do vírus da gripe (ou outros vírus respiratórios) para o melhor tratamento do doente, tal como tem sido prática até agora. O facto de serem prescritos dois testes (para SARS-CoV-2 e gripe) não implicará uma maior demora no diagnóstico, pois existem testes que permitem a testagem de vários vírus no mesmo procedimento”, salvaguarda a médica.
Em relação à vigilância propriamente dita, como as consultas nos centros de saúde não estão organizadas ou acessíveis como noutros anos, perceber até que ponto a gripe está ou não a circular com maior intensidade vai assentar na testagem de amostras aleatórias de doentes a cada semana, a partir de doentes selecionados nos locais de atendimento da covid-19.
“A uma amostra de doentes selecionados com base numa definição de caso previamente definida é colhida uma amostra biológica para o diagnóstico de SARS-CoV-2, gripe e outros vírus respiratórios. Esta testagem é independente da gravidade do quadro clínico do doente, isto é, estes testes podem não ser necessários para o tratamento do doente e têm como objetivo identificar os vírus em circulação na nossa população. Naturalmente, estes resultados são comunicados ao médico que informará também o doente. Assim, é através desta rede de vigilância que será mantida a vigilância das infeções respiratórias”, sublinha a médica.
Foi também pedido aos médicos que integram a rede-sentinela que notifiquem utentes das suas listas que atendem com infeção respiratória aguda, independentemente da consulta ser presencial ou tele-consulta.
O impacto da gripe: todos os anos 35 mil doentes vão ao médico, mas haverá muito mais casos
A expectativa é que, com as medidas tomadas para prevenir o vírus da gripe, e a campanha de vacinação, possa haver uma época de gripe menos intensa. Que impacto costuma ter a gripe na população?
Ana Paula Rodrigues sublinha que o número de pessoas com gripe varia de ano para ano, em especial em função dos vírus em circulação e da efetividade e cobertura da vacina contra a gripe. “De acordo com um trabalho apresentado o ano passado na Reunião Anual da Gripe, com dados das épocas 2012/13 a 2018/19, estimámos, em média, cerca de 35.000 casos anuais de gripe atendidos em cuidados de saúde primários. No período a que se refere este estudo, o número anual de casos de gripe variou entre cerca de 21.000 em 2017/18 e 61.000 em 2014/15”, diz a médica, portanto pessoas cujos sintomas as levaram ao médico.
Na maioria das vezes a gripe tem uma evolução benigna, ligeir,a e muitos casos não chegam a passar pelos serviços de saúde. O pneumologista Filipe Froes, consultor da DGS nesta área, indicou numa entrevista recente ao i que a estimativa é de que, anualmente, a gripe afete até dois milhões de pessoas por ano, 10% das crianças e 20% a 30% dos adultos – a vacina ajuda também a que, mesmo que haja infeção, os quadros sejam mais ligeiros. Os cuidados intensivos costumam receber 150 a 200 doentes, o que ajuda a perceber o impacto mais expressivo que tem tido a covid-19 na evolução para quadros graves de pneumonia, mesmo com as medidas aplicadas nos últimos meses, que nunca foram aplicadas para conter uma época de gripe. Atualmente há 200 doentes internados com covid-19 internados em UCI, o dobro desde o início do mês.
Em termos de mortalidade, há diferentes indicadores disponíveis. Por um lado, o excesso de mortalidade no inverno, atribuído a gripe e ondas de frio nas análises do INSA, já que o frio está também associada à descompensação de doenças crónicas. Desde que há registos, o inverno de 1998/1999 foi o que registou um maior excesso de mortalidade na época de gripe sazonal, com 8514 mortes acima do esperado face à média dos anos anteriores. Já na época gripal de 2018/2019, a última com um relatório publicado pelo INSA, estimou-se um excesso de 2.844 óbitos e 3331 mortes atribuíveis à epidemia de gripe.
Já casos em que a gripe foi efetivamente considerada causa de morte nas estatísticas de mortalidade no país são menos. Esses dados são publicados anualmente pelo Instituto Nacional de Estatística a partir da codificação de causas de morte feita pela Direção-Geral de Saúde a partir da informação nos certificados de óbito, um processo que a DGS já disse que este ano está a tentar acelerar. Ainda não são conhecidas as causas de morte de 2019 e o aumento mais acentuado da mortalidade por todas as causas este ano tem sido questionado por médicos e académicos, que alertam que além da epidemia de covid-19 é possível que esteja a verificar-se um efeito da suspensão de consultas, cirurgias e exames nos últimos meses. E pedem uma avaliação das causas de morte. Até aqui, a única explicação do INSA e DGS foi uma associação de picos de mortalidade a ondas de calor que ocorreram neste verão, já que está também demonstrado um aumento da mortalidade quando as temperaturas estão vários dias acima do normal. A DGS já anunciou entretanto que será acelerada a codificação – enquanto se acaba o ano de 2019, estão já a ser codificadas causas de morte deste ano.
No caso da gripe, as estatísticas do INE e os casos imputados diretamente à gripe com base na informação nos certificados de óbitos e diagnonóstico laboratorial ficam longe da realidade estimada pelos peritos. Em 2018, o último ano com dados tratados pela DGS, as estatísticas do INE, que o i consultou, indicam 202 óbitos associados a quadros especificamente relacionados com o vírus influenza, incluindo casos em que o vírus foi confirmado laboratorialmente e outros em que foi feito só o diagnóstico clínico. Já em 2017 foi estabelecida como causa de morte uma pneumonia ou complicação a associada a gripe em 114 casos.
Como vai ser este ano?
Filipe Froes assinalava na mesma entrevista que, nos países do hemisfério sul, que já viveram a época de gripe sazonal com covid-19, parece ter havido uma redução da incidência e também das hospitalizações por gripe. Há no entanto um motivo de preocupação que chega destes mesmos países: “Sabe-se que a infeção respiratória gripal diminui as defesas e aumenta a exposição de recetores das células do aparelho respiratório. Pode predispor com duas ou três semanas de antecedência a infeção com o coronavírus e potenciar a resposta inflamatória que o SARS-CoV-2 também desencadeia. E é a esta resposta inflamatória que alguns autores descrevem como a tempestade perfeita. No Hemisfério Sul encontraram 3% de co-infeções de SARS-CoV-2 e influenza e foram geralmente pessoas que tiveram formas mais graves de covid”, explicou o médico.
“Felizmente as medidas não farmacológicas tiveram um impacto na redução de casos, mas esta sinergia pode trazer quadros mais graves. E por isso é essencial que consigamos testar mais, idealmente todas as pessoas com sintoma gripal, para perceber inclusive se existe uma co-infeção”, apelava na altura Filipe Froes, defendendo o reforço da capacidade de testagem no país.
A vacinação é habitualmente a linha de frente da prevenção da gripe, para a qual a maioria da população também já tem algumas defesas por ser um vírus com o qual contacta todos os anos – a diferença para um cenário de pandemia, em que há um vírus novo ao qual a maioria da população continua a esta altura suscetível e sem vacina.
No ano passado, segundo a Sociedade Portuguesa de Pneumologia, Portugal atingiu pela primeira vez a meta proposta pela Organização Mundial de Saúde de ser vacinada 75% da população mais vulnerável a complicações de gripe, como idosos e doentes crónicos. Este ano o Ministério da Saúde anunciou a compra de um número recorde de vacinas, dois milhões de doses, que serão distribuídas entre centros de saúde e farmácias nas próximas semanas. Já houve críticas por parte dos farmacêuticos ao reduzido número de doses distribuído pelas farmácias no arranque da vacinação geral esta semana, depois de a vacina ter sido antecipada em duas semanas a grupos de maior risco. Muitos doentes de grupos de risco costumam vacinar-se nas farmácias e temem por isso algum atraso ou mesmo quebra na cobertura vacinal, um balanço que só poderá ser feito dentro de algumas semanas.