Barça-Real: o roubo do século

Vindo da Colômbia, com dois contratos assinados, Di Stéfano foi o centro de uma guerra que desequilibrou o futebol espanhol.

Um cronista espanhol, que infelizmente a memória não guardou em forma de nome, escreveu certa vez: «O estádio do Real Madrid é inclinado para a esquerda por ter Di Stéfano jogado lá tanto tempo». Mas a verdade é que tal poderia ter muito bem acontecido em Camp Nou tal foi a tranquibérnia em que a sua contratação se transformou, abrindo uma guerra eterna entre os dois adversários que hoje se defrontam pelas 15 horas em Barcelona.

Há pouco mais de três anos, dois diretores do museu do River Plate, Rodrigo Daskal e Patrício Nogueira, resolveram fuçar por entre os milhares de documentos que se espalhavam pelos escritórios do clube de Buenos Aires e por alguma ordem naquele caos incomodativo. Foi então que depararam com um pasta com mais de trinta páginas arquivada com a indicação: «Transferência do jogador Di Stéfano para o Futebol Clube Barcelona». Eis um daqueles achados que deixa coca-bichinhos do calibre de Daskal e Nogueira com pele de galinha.

A data dos documentos reporta ao ano de 1953 e, entre eles, misturam-se recibos, atas e cartas trocadas entre quatro clubes, o River Plate, os Millionarios, da Colômbia, o Real Madrid e o Barcelona.

Alfredo Stéfano Di Stéfano Laulhé, de nome completo, natural de Buenos Aires onde nasceu no dia 4 de julho de 1926, tinha jogado no Millionarios de Bogotá entre 1949 e 1953, cedido pelo River. O campeonato colombiano era, na altura, uma mina de ouro, atraindo todos os grandes jogadores da América Latina, o que provocou a fúria incontida dos clubes que não conseguiam manter os seus mais refinados artistas. A pressão feita sobre a FIFA foi implacável, levantava-se a dúvida em relação à proveniência dos subitamente riquíssimos clubes do país e o órgão máximo do futebol mundial pura e simplesmente deixou de reconhecer a Colômbia como membro.

Para Di Stéfano era igual. Continuava a jogar e a encher os bolsos até que, em 1952, os dirigentes da Federação Colombiana quebraram e decidiram regressar ao seio da FIFA. Ordem seguinte: todos os estrangeiros tinham um ano para regressar aos seus clubes de origem. Para Di_Stéfano, agora já não era bem igual.

 

A guerra

O Barcelona fez chegar ao River Plate um documento no qual mostrava interesse na contratação de Di Stéfano. No dia 19 de maio de 1953, o River estabeleceu o preço do jogador em dois milhões e meio de pesos. Os catalães regatearam: 1 milhão e 800 mil. No dia 25 de junho, a transferência ficou acordada por dois milhões, sendo metade pago em dinheiro até ao dia 10 de_agosto e o restante em três parcelas até final de 1954.

Tudo isto pode confirmar-se na tal pasta desenterrada de entre toneladas de papéis por Daskal e Nogueira. Os presidentes do River Plate, Enrique Pardo, e do Barcelona, Enric Martí Carreto, trocaram cartões de felicitações e Di Stéfano ficou de aterrar em Barcelona no dia 26 de julho. Havia um pequeno problema constante numa das alíneas do contrato: o jogador tinha de apresentar uma carta liberatória passada pelos Millionarios de Bogotá. Aqui a porca começou a torcer o rabo.

No dia 24 de julho, Raimundo Saporta Namías, tesoureiro do Real Madrid chegava a Buenos Aires com uma procuração do presidente Santiago Bernabéu. Pelo caminho, passara por Bogotá. E o River não tardou a receber uma missiva surpreendente da direção dos Millionarios: «Chegámos a um acordo total com o Real Madrid para a cedência do jogador Di Stéfano até 1954». Era de escacha!

O dinheiro estava decididamente a mexer com o raciocínio dos dirigentes sul-americanos. Saporta reuniu-se com Enrique Pardo e este tratou de enfiar areia na engrenagem, acordando com os madridistas que se o River não recebesse a verba combinada com o Barcelona até 11 de agosto, o jogador passaria a pertencer ao_Real pelo montante de dois milhões de pesos. No 7 de agosto, os catalães fizeram uma transferência de 900 mil pesos. Parecia que o assunto ficaria por ali. No dia 23 de maio, enquanto os dirigentes do Real continuavam a procurar desmanchar o negócio entre River e Barça, Alfredo Di Stéfano chegou a Barcelona. Treinava-se com a equipa, chegou a participar em três jogos particulares, até que a bomba rebentou de vez. O Real exigira que a FIFA reconhecesse como válido o contrato feito com os Millionarios que, na verdade, ainda tinham a posse do jogador por mais um ano antes de serem obrigados a devolvê-lo ao River. Di Stéfano fincou pé: não regressaria nem à Colômbia nem à Argentina. Por seu lado, o Barcelona não conseguia entender-se com os colombianos para desbloquear o impasse.

A FIFA lavou as mãos e entregou a questão à Federação Espanhola. Ainda hoje, na Catalunha, se acusa Francisco Franco, o caudilho, de ter interferido no conflito. O ministro dos Desportos, general Moscardo, ainda foi mais salomónico: Di Stéfano faria quatro temporadas alternativas, ora no Real ora no Barcelona, iniciando a que estava a começar em Madrid. O orgulho catalão, ferido até ao ódio, não suportou a desfeita. Que o Real ficasse com Alfredo! o Barça não entraria num acordo tão espúrio. Nessa altura, os blaugrana dominavam o futebol em Espanha. Com a chegada de Di Stéfano a Madrid tudo iria mudar…