Não foi ontem que Ana Rocha de Sousa aterrou no cinema, ainda que não fosse na gaveta de realizadora-argumentista que o cinema e o público português a colocavam. Sobre o lugar que ocupava até à secção Horizontes de Veneza levar, depois da realização de duas curtas que passaram debaixo do radar mediático, a sua estreia na longa-metragem, não vale a pena gastar mais linhas: é mais do que conhecido. «A vida não é efetivamente aquilo que parece». Poderia até ser, mas não é ao seu percurso, sobre o que ao longo destes anos em que andou longe dos holofotes, que se refere nestas palavras.
É antes às vidas de famílias, «milhares de famílias» que vivem o drama que um dia, depois de regressada a Portugal e depois de, já em Lisboa, ter sido mãe, começou a descobrir a partir do que lhe tinha chegado como apenas uma notícia: a notícia de uma mãe portuguesa a viver no Reino Unido, uma realidade que poderia ter sido a sua se não tivesse deixado Londres, para onde se mudara para estudar cinema na London Film School, a quem fora retirado um filho com dias de vida pelos serviços de proteção de menores britânicos.
Na imprensa, o tema fez a partir daí correr muita tinta; nas televisões, deu origem a várias reportagens sobre o desespero dos pais que perdem os seus filhos às mãos do rígido, por vezes cego, sistema britânico. Aconteceu já com várias famílias portuguesas, como acontece, lembra a realizadora, com famílias de outras nacionalidades a viverem no país e com famílias britânicas. Em 2015, uma mãe portuguesa perdeu dois dos seus cinco filhos para a adoção por alegados maus tratos físicos, num processo que se arrastou ao longo de dois anos. No ano seguinte, a revista Visão fazia capa com as 47 famílias portuguesas a viver no Reino Unido às quais os serviços sociais haviam retirado os seus filhos desde 2010, devido a uma lei que muitos consideram «demasiado restritiva» e promotora de «adoções forçadas», uma vez que permite a entrega das crianças para adoção em poucas semanas e sem o consentimento dos progenitores, num processo que rapidamente se torna irreversível.
A Ana Rocha de Sousa não interessa entrar em detalhes sobre esse primeiro caso que a levou a mergulhar neste mundo, no inicio de uma investigação que viria a transformar-se na sua primeira longa-metragem: Listen, que depois de ser distinguida com seis prémios em Veneza, acaba de chegar a 57 salas de cinema portuguesas. Interessa-lhe que se abram os olhos para este tema. «Muni-me de tudo o que era possível e imaginário para ter a certeza de que aquilo que estou a retratar existe, acontece, é verdade e é assim. E isso é o que é verdadeiramente importante. Não quero associar este filme a um caso específico porque não é justo um filme de ficção ancorar-se dessa maneira na vida de pais que dependem profundamente de uma esperança».
A cegueira do sistema de proteção de menores
Passada nos subúrbios de Londres, a história é então a de uma família absolutamente ficcionada. A de Bela e Jota (Lúcia Moniz e Ruben Garcia), ela empregada de limpezas, ele carpinteiro, um casal de portugueses imigrantes no Reino Unido que, sem contratos de trabalho e desprotegidos pelo sistema social, se veem de um dia para o outro confrontados com a cegueira do sistema de proteção de menores britânico quando a surdez de Lu (Sophia Myles) desencadeia um processo que os colocará em risco de a perderem não só a ela como aos seus dois outros filhos.
O que Ana Rocha de Sousa se propôs a fazer aqui foi então, através de uma história completamente ficcionada, «agarrar nessas histórias verdadeiras que parecem maus guiões de ficção — e isto é mesmo verdade, e dá um descrédito à dor destas famílias absolutamente avassalador, ainda por cima quando colocamos na balança um país como Inglaterra, onde achamos impossível isto ter lugar — e perceber que a vida efetivamente não é aquilo que parece». E acrescenta:«Lidar com isso, agarrar nisso da forma mais subtil que se conseguir, mas também não perdendo aquilo que é fundamental e que é muito importante mostrar-se: que efetivamente há uma bola de neve que cresce e que é impossível de parar na história deste filme como em milhares de histórias de milhares de famílias. Histórias em que tudo aponta para que a verdade seja uma e afinal não é. Isto acontece muito mais vezes do que aquilo que achamos».
‘O que vão encontrar é devastador’
O cinema, como a arte, não tem de ser uma arma, mas não são raros os casos em que se torna. Para Ana Rocha de Sousa, esse papel é quase propósito. Apesar de rodado em Londres, de o elenco ser naturalmente composto por uma maioria de atores britânicos e de ser falado tanto em português como em inglês, numa guerra de línguas e identidades travada até dentro de casa, Ana Rocha de Sousa sublinha, e vai sublinhando a espaços, que este é um filme português. É-o inegavelmente. Mas é também e ao mesmo tempo o espelho do lugar em que começou a fazer-se cineasta, pelas influências claras, no conteúdo e até na forma, da corrente do realismo social britânico que encontra o seu expoente máximo em Ken Loach.
Até nesse propósito interventivo, na forma como Ana Rocha de Sousa descreve o ato de fazer, o ato de se entregar a um filme: como quem se entrega a uma luta por um mundo mais justo. «Fazer este filme é precisamente tentar trazer o crédito a estas famílias, a estas dores e tentar chegar às pessoas com um tema que as toque mas que não as assuste de tal modo que venham apenas dizer que eu enlouqueci. Porque efetivamente não. Entrego-me a este filme não tentando criar uma revolução contra tudo e contra todos, mas chamando pelo menos a atenção para que isto acontece. E peço a todas as pessoas que tiverem dúvidas que pesquisem. Mas que pesquisem profundamente. Porque o que vão encontrar é devastador, profundamente devastador».