São muitos os cemitérios, de norte a sul do país, que vão encerrar portas no Dia de Todos os Santos, amanhã, e no Dia dos Fiéis Defuntos, na segunda-feira. Os familiares das inúmeras vítimas da covid-19 continuam a não poder prestar uma homenagem aos seus entes queridos. Este luto à distância pode causar um trauma difícil de curar.
São 10 da manhã e no Cemitério dos Prazeres, provavelmente o mais visitado do país, pouca vida se vê. Quando entramos, é quase impossível não repararmos na meia dúzia de gatos que nos olham. Teresa Pires é funcionária neste espaço há já vários anos e conta que «antes da Covid não parava quieta». Desde que abria portas, às 9 horas, o cemitério enchia-se de gente, curiosa para ver os jazigos e «até tirar fotografias em frente aos mortos». Ao contrário do que acontecia antes da pandemia, a funcionária pode ficar à conversa connosco durante cerca de uma hora, tendo de interromper o discurso apenas uma vez. O curioso era um visitante polaco que comentava o facto de os caixões serem de madeira e de, na Polónia, isso ser impossível devido ao tempo húmido.
Teresa é a responsável pela Capela de São João Bosco, situada mesmo de frente para a entrada do Cemitério. Para ela, «o mundo foi posto em segundo plano» quando começou a pandemia. Não só as cerimónias de fim de vida se tornaram diferentes, como também o próprio acompanhamento para os doentes que continuam a lutar pela vida, porque «continuam a existir outras doenças e as pessoas continuam a morrer por outras coisas sem ser a covid».
Daniela Nogueira é psicóloga especialista em luto e está a realizar um estudo internacional sobre o luto e a pandemia. O objetivo é perceber de que maneira é que o novo coronavírus teve impacto no processo das cerimónias fúnebres. Ao SOL, a psicóloga admite que «as cerimónias fúnebres são extraordinariamente importantes», porque nos ajudam a «ritualizar e a propiciar um momento de despedida e a estruturar o nosso caos emocional». Assim sendo, com as restrições impostas pela DGS relativamente às cerimónias fúnebres é de esperar um «agravamento de um conjunto de situações que podem aumentar o risco de uma condição muito complicada, que é o luto prolongado».
O luto prolongado acontece quando «a vivência de uma experiência de perda geradora de intensas saudades e anseio pelo falecido que se estende por um período superior a 6 meses», pode ler-se na tese de mestrado em cuidados paliativos Adaptação e Validação Portuguesa do Instrumento de Avaliação do Luto Prolongado – Prolonged Grief Disorder (PG-13), de Mayra Armani Delalibera.
André Silva é funcionário na agência Funerária Barreirense. Acredita que cerca de 15% dos funerais que realizou este ano foram por covid-19. Não consegue dizer o número certo, porque, ao contrário do que sucedia há uns anos, «a causa da morte já não consta na guia». O balanço que faz é relativo às etiquetas presentes dos corpos que vinham do hospital com o aviso ‘Suspeito de Covid-19’. Quando isso acontecia, o processo de limpeza do corpo não podia acontecer e a pessoa era posta num saco de plástico com o caixão fechado, sem poder ser vista pela família.
Para o agente funerário, esta é uma situação que possibilita a abertura de um trauma: «Quando um familiar não vê o morto, às vezes começa a ficar paranoico. Começa a pensar ‘será que foi mesmo o meu pai que eu enterrei? Se calhar foi outra pessoa e ele ainda está bem’. Apesar de este pensamento não ser muito lógico, acontece».
Aos habituais processos ou rituais fúnebres, Daniela Nogueira acredita que existem várias alternativas, apesar de achar que o «afeto físico é difícil de ser substituído, mas não é impossível». A psicóloga sugere que se façam memoriais em casa, como por exemplo «criar um álbum de família, um altar com objetos importantes ou fazer um apanhado com as frases emblemáticas dessa pessoa». O objetivo é que as intenções se mantenham, apesar de a forma de homenagear ter de ser um pouco mais ‘criativa’.
Mas, tal como afirmou Teresa Pires, as pessoas continuam a ficar doentes por outras coisas. A avó de Miguel Morgado morreu sozinha no hospital devido à covid-19. Apesar de a pandemia não ter sido a causa direta pode por muito bem ter levado ao acontecimento. Zilda tinha 83 anos quando, em agosto deste ano, foi internada no Hospital da Luz, com uma pneumonia. Cinco anos antes tinha tido cancro da mama, mas já estava recuperada e ia apenas a consultas de rotina para ‘vigiar’ a situação. Este ano, a consulta nunca chegou a acontecer. Era suposto ter sido no início do ano, mas, devido à pandemia, acabou por ser adiada. A consulta de rotina também não ocorreu porque, entretanto, foi internada. É provável que a pneumonia tenha sido causada pelas metástases que tinha no pulmão, que nunca chegaram a ser diagnosticadas. Além do pulmão, também o rim foi afetado. Depois desta descoberta, foi apenas uma questão de dias até morrer.
Zilda, que estava internada no hospital há quase três meses, raramente teve contacto com a família. Deixaram de a poder visitar e, quando lhe ligavam, ela «começou a recusar as chamadas e parecia que estava chateada connosco por não estarmos lá», conta Miguel ao SOL. O neto acredita «seriamente que sem covid ela ainda estava cá».
Sem covid-19, Zilda poderia ter tido a sua consulta de rotina habitual. Poderia ser que tivessem detetado as metástases a tempo de não serem fatais. Se tal não acontecesse, pelo menos teria tido o acompanhamento da família. Miguel diz que a avó estava já «sem força por não ter a família com ela» e que «começou a morrer por solidão».
Depois da morte, a família não teve direito a uma despedida tradicional. O velório «não foi pela noite dentro, como é hábito», afirma Miguel, e em vez ser na casa mortuária «teve de ser dentro da Igreja, por ser um espaço maior e dar para mais pessoas». Já no funeral, apenas a família chegada pode estar presente.
São 17 horas e Sandra Rodrigues, proprietária de uma florista à porta do cemitério da Vila Chã, no Barreiro, começa a arrumar o espaço. Em comparação com o mesmo dia no ano passado, estima que a faturação tenha diminuído em cerca de 80%.
Dia de Todos os Santos sem cemitérios
No município do Porto os cemitérios vão estar encerrados, assim como em Guimarães e um pouco por todo o Norte e Centro do país. Os de Lisboa vão estar abertos, mas com restrições.
Desde alargar os horários, até encerrar portas: os municípios fazem o que podem para que se evitem os ajuntamentos nos cemitérios neste fim-de-semana e na segunda-feira. Com o Dia de Todos os Santos a celebrar-se amanhã e o Dia dos Fiéis Defuntos no dia seguinte, as autarquias temiam aglomerações e, por isso, muitas decidiram encerrar cemitérios.
Na lista dos encerramentos durante este fim-de-semana e na segunda-feira estão todos os dos municípios do Porto, Guimarães, Ovar, Murtosa, Barcelos, Espinho, Esposende, Estarreja, Famalicão, Gondomar, Oliveira de Azemeis, Santa Maria da Feira, Trofa, São João da Madeira, Vale de Cambra, Fafe, Maia e Vizela.
Por outro lado, os cemitérios dos concelhos da Amadora, Aveiro, Barreiro, Beja, Bragança, Coimbra, Évora, Faro, Funchal, Lisboa, Loures, Mafra Montijo, Olhão, Seia, Setúbal e Vila Real vão estar abertos.
Em Lisboa, por exemplo, os cemitérios vão funcionar em horário normal, mas as entradas vão ser controladas, vão ser criados circuitos de circulação e as capelas vão estar fechadas, não havendo, portanto, missas. Vão também ser proibidos ajuntamentos superiores a cinco pessoas, tirando quando são do mesmo agregado familiar, e o uso de máscara é obrigatório.
Em alguns concelhos, os horários foram alargados para possibilitar um maior desfasamento entre os visitantes. Um exemplo disso é o cemitério de Vila Real, que, no Dia de Todos os Santos, vai estar aberto das 7h00 às 19h30, as casas de banho vão estar encerradas e não será permitida a permanência nas instalações por mais de 30 minutos.
Em Olhão só vão ser feitas entradas de hora a hora e cada entrada não pode durar mais de 30 minutos (uma entrada às 9h00 com saída às 9h30, a próxima às 10h00 com saída às 10h30 e assim sucessivamente). A manutenção de jazigos e sepulturas vai ser proibida.
A 12 de outubro, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) pediu que não se fechassem os cemitérios e, para que tal fosse possível em segurança, sugeriu algumas medidas de segurança tanto para párocos como para fiéis, além das já conhecidas medidas individuais de proteção.