Lembro-me de um dia ir com a minha avó e a minha tia ao cemitério no Dia de Finados visitar a campa do meu avô e dos meus bisavós. Não tinham vontade de o fazer comigo, porque acharam que não seria adequado à minha idade e que poderia ficar impressionada com qualquer coisa, e talvez também por não quererem estar preocupadas comigo naquele momento solene. Mas nesse dia os meus pais estavam a trabalhar, pelo que, embora tenham hesitado, acabámos por ir. Senti que era um programa cerimonioso, com os seus rituais, que cumpriam há muito tempo e que não podia ser adiado, mesmo comigo atrelada.
Quando ouvi as restrições e proibições para o Dia de Finados lembrei-me imediatamente deste episódio.
Muito temos sido prejudicados com as nossas despedidas àqueles que nos deixam. Durante o estado de emergência eram de partir o coração as histórias de quem não podia acompanhar os familiares nos últimos dias, de quem ficava sozinho nos lares e hospitais, das derradeiras despedidas que ficavam por fazer, ou de quem não podia abraçar os familiares num momento tão duro para todos. E logo de seguida surgiram, inacreditavelmente, as comemorações do 1.º de Maio com milhares de pessoas reunidas. Não estão sequer aqui em causa as medidas adotadas para os lares, hospitais, velórios ou funerais, mas a falta de respeito e de sensibilidade do nosso Governo que, sabendo o esforço que todos fazíamos para cumprir, por vezes com grande esforço, as regras impostas, abriu uma exceção a uma comemoração absolutamente prescindível.
Em princípio, quem quiser pode comemorar o Dia do Trabalhador nos próximos anos. Mas só acompanhamos quem está em estado terminal uma vez, e quem está do outro lado nunca mais poderá receber esse carinho, perante a partida de alguém é só naquele dia que lhe podemos dizer adeus, é sobretudo naquele dia que precisamos de dar e receber um abraço e não noutro qualquer. Foi uma decisão vergonhosa que se repetiu mais tarde com a Festa do Avante!, que por alguma razão teria um estatuto diferente de todas as outras.
Mas parece que o Governo não se ficou por aqui e, numa altura em que as restrições começam a apertar, decidiu aprovar a Fórmula 1, que juntou de forma inconsciente milhares de pessoas em Portimão, ao mesmo tempo que implicou com uma tradição milenar de culto aos mortos. Será razoável a proibição de circulação entre concelhos neste fim de semana, o fecho da rede expresso e, por conseguinte, de alguns cemitérios, quando para algumas pessoas é tão importante fazer esta homenagem a quem partiu? Por que razão seriam os adeptos da Fórmula 1 conscientes e cumpridores das regras sanitárias e as parcas pessoas que vão as cemitérios umas levianas? Que eu saiba os mortos ainda não têm covid e as visitas ao cemitério fazem-se muitas vezes solitariamente ou em pequenos grupos da mesma família.
Não somos só nós que fazemos testes à covid, a covid tem-nos testado e posto à prova como nunca, e infelizmente têm vindo ao de cima, além de todas as fragilidades do nosso SNS que já eram mais ou menos evidentes, uma série de contrassensos, falta de bom senso, decisões e injustiças muito pouco louváveis por parte do Governo. Não deve ser tarefa fácil tomar decisões e governar numa situação destas, mas, tal como numa casa, as regras básicas são para ser cumpridas por todos, sem exceções, para que não haja injustiças. Há decisões que jamais deveriam ser sequer consideradas num sistema democrático.