O sonho democrata de uma vitória decisiva de Joe Biden na noite eleitoral esfumou-se, com tudo a depender de quatro swing states, a Pensilvânia, Michigan, Wisconsin – que estão a contar votos por correspondência, a maioria deles democratas, mostram as sondagens – e a Geórgia, que pende para os republicanos, mas ainda falta Atlanta, uma cidade avassaladoramente democrata. O confronto entre Biden e Donald Trump entrou em terreno desconhecido, tornando-se uma guerra de trincheiras. Exércitos de advogados republicanos e democratas, que já se preparavam para este cenário muito antes das eleições, avançam sobre os tribunais, após o Presidente prometer fazer tudo para parar a contagem.
“Nós estávamos a preparar-nos para ganhar estas eleições. Francamente, nós ganhámos as eleições”, declarou Trump, perante uma multidão de apoiantes exultantes, no final da noite. “Esta é uma fraude enorme para a nossa nação”, acusou, sem apresentar quaisquer evidências disso. “Nós vamos ao Supremo Tribunal, queremos que toda a votação pare”.
A estratégia do Presidente não é novidade. Há meses que põe em causa a validade do voto por correspondência, sugerindo um desafio judicial deste género. Trump chegou a justificar publicamente que a nomeação da conservadora Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal serviria para que a juíza decidisse a eleição.
“Mais uma vez, o Presidente está a mentir ao povo americano e agir como um pretenso déspota”, tweetou o democrata Adam Schiff, líder da comissão do Congresso para as secretas. “Nós vamos contar cada voto. E ignorar o barulho”.
Cenários caóticos Para chegar aos tão desejados 270 votos no colégio eleitoral, necessários para a reeleição, Trump pode perder ou no Michigan ou no Wisconsin, mas nunca na Geórgia ou na Pensilvânia. “Mas os republicanos nem sequer têm de vencer; tudo o que eles têm de fazer é empatar”, escreveu a New Yorker. “Se o voto não for certificado até oito de dezembro, estados cujo poder legislativo é controlado pelos republicanos podem nomear eleitores, que provavelmente votarão por Trump”. É esse o caso de todos os swing states ainda em jogo.
Para quem assistiu à disputa pela Florida entre Geórgia W. Bush e Al Gore, nas eleições de 2000, a sensação é de déjà vu. Com toda a eleição a depender do estado, que estava no fio da navalha entre os dois, o que ficou na memória foram sucessivas contagens e recontagens, que foram paradas pelo Supremo Tribunal, ficando Bush com uns meros 530 votos a mais que Al Gore. O que poucos se lembram é que, antes da decisão do Supremo Tribunal, o governador do estado, Jeb Bush – irmão de George – já se preparava para nomear eleitores republicanos para o colégio eleitoral, como pode acontecer agora, a uma escala muito maior.
“Deixe-me explicar-lhe como funciona o colégio eleitoral, acrescenta alguma nuance”, referiu a semana passada J. Edwin Benton, professor de Ciências Políticas na Universidade do Sul da Florida, ao i. “Quem são estes eleitores? Muito antes das eleições, em cada estado, o partido republicano e os democratas nomearam uma série de pessoas, que caso o seu candidato ganhasse o estado iriam votar”.
“Há dois conjuntos de eleitores, um deles é ativado quando o seu estado certifica um candidato como vencedor da eleição”, salientou Benton. “Mas se o estado não conseguir certificar a eleição, esses votos não são lançados. Têm cerca de um mês para acertar”, avisou. “Consigo ver Donald Trump a tentar atar a contagem dos votos em tribunal, com processos judiciais, ao ponto que os eleitores de estados que o apoiam conseguem votar, mas os outros não”.
Há outra possibilidade que pode causar um caos ainda maior. O congresso estadual da Pensilvânia, Michigan, Wisconsin é controlado pelos republicanos, mas os seus governadores são democratas. Podemos ter ambos os poderes a certificar os seus eleitores, acabando com o dobro dos votos, os chamados “eleitores em duelo”, alertou a Reuters – algo que só aconteceu duas vezes na história, nas eleições de 1876 e 1960.
“O assustador é que qualquer caso iria expeditamente para o Supremo Tribunal. E ele tem esse voto seguro, se os juízes puserem de lado os seus escrúpulos e integridade”, lamentou Benton, que se lembra bem da disputa de 2000.
Nessa noite eleitoral, o professor participara num programa de rádio, até de madrugada. “Cheguei a casa, tomei um banho, fui dar aulas. Os alunos perguntaram-me: ‘Isto vai para o Supremo Tribunal, quem vai ganhar?’. Sem pestanejar disse: ‘O Bush’. Perguntaram-me porque é que dizia isso e respondi: ‘Contem-nos!’ Cinco dos juízes foram nomeados por republicanos, quatro por democratas. O resultado seguiu as linhas partidárias. E Donald Trump não se esquece disso”, avisou. “O tribunal é suposto ser neutro, objetivo. Mas, debaixo dos robes, os juízes usam vermelho ou azul”.
O caminho para a confusão Afinal, como é que chegámos aqui? Há uns dias, parecia que Joe Biden tinha tudo para uma vitória decisiva na noite eleitoral. Estava à frente nas sondagens nacionais, bem posicionado em estados cruciais e recebera um manancial de financiamento, que lhe permitiu inundar os swing states de anúncios.
À semelhança de Hillary Clinton em 2016, talvez Biden tenha pecado por excesso de confiança. Bastava Trump perder na Florida, ou numa mão-cheia de swing states mais pequenos, para acabar com as suas hipóteses de reeleição. Em vez de se concentrar nuns quantos estados chave, Biden partiu para a ofensiva, apostando recursos em virar bastiões republicanos como o Ohio, Carolina do Norte, até o Texas – não lhe serviu de nada, acabou por perder em todos eles, por uma margem muito pequena. Só conseguiu virar o Arizona, fraco prémio de consolação. Talvez ainda consiga virar a Geórgia, se conseguir navegar as batalhas judiciais que tem pela frente.
Mal chegaram os resultados da Florida, ficou claro que seria uma longa e tumultuosa semana eleitoral. Os democratas contavam ter o significativo voto latino deste estado garantido, mas sondagens mostram um apoio muito inferior desta comunidade a Biden que o recebido por Clinton em 2016.
As sucessivas tentativas do candidato democrata para conquistar a comunidade latina parecem não ter surtido efeito. Talvez a mais divulgada dessas tentativas – por ter sido amplamente ridicularizada nas redes sociais – tenha sido quando Biden, durante um comício para a comunidade porto-riquenha, na Florida, puxou do telemóvel para pôr a dar a música “Despacito”. Nem o foco dos democratas neste estado, que gastaram mais de 110 milhões de dólares em anúncios desde maio, parece ter surtido o efeito desejado.
Já a mensagem de Trump, de que Biden é um cavalo de Troia da ala esquerda dos democratas, supostos perigosos comunistas, adaptou-se perfeitamente aos receios das significativas comunidades cubanas e venezuelanas da Florida, conhecidas pelo seu conservadorismo, muito críticas dos regimes de esquerda nos seus países de origem.