Em tempos era atribuição dos homens de talento dar corda ao mundo. Se a vida revelava pouco interesse, um tipo começava por interrogar-se a si mesmo, dirigir-se acusações, pois mesmo na ausência de luxos, regalos desses que desembaraçam o juízo de excessos metafísicos, e mesmo na falta de orgulhos do poder, um homem reclamava a sua independência numa vaidade interior, e ao findar os seus dias alegrava-se se pudesse dizer: “tudo gozei, pela imaginação, num instante e de um só sorvo”. Artur Portela Filho tinha essa grande exigência consigo mesmo, essa que dá origem a um estilo profundo, ao cultivo exasperado das qualidades pessoais, a desses homens que, em algum momento, aspiram a deixar uma obra destinada à nutrição augusta da humanidade. Ele tinha com Eça de Queirós um diálogo vivíssimo, o que o levou sempre a praticar o seu espírito por escrito na margem que se opõe ao regime dessa prosa antiquada, mesmo se enxuta, a dos moralistas caturras de cada tempo, que mesmo se esbofeteiam um assunto, e se lhe arrancam até ao último grito, horas ou dias depois a coisa esmorece. O teste, assim, é fácil de fazer: vamos lá ver e confirmamos que cada palavra se tornou como um carvão apagado… Hoje, o público já nem faz ideia de nada. Estar bem informado, nos nossos dias, equivale a viver com uma tremenda dor de cabeça, o juízo ferrado por um enxame, numa confusão que nos arrasta para o fundo. “É claro que o público passa bem por multidão, se o não quisermos olhar nos olhos e não nos interessar o que se passa por trás dessa fileira compacta”, escreveu Artur Portela Filho, numa das suas mais antigas crónicas. Ele que foi um infiltrado da literatura no jornalismo, tornou-se uma das suas figuras mais notáveis por olhar o seu público nos olhos. E que grandes os tinha. Que capacidade de esmagar com um apertar lancinante das pálpebras a mosca que se preparasse para trazer este ruído de asas no ambiente de morgue que tomou conta das redacções. E o que mais custa é que a falta que jornalistas como ele fazem nos jornais nem deu para que a sua morte fosse noticiada com o tipo de fanfarra estilística que lhe devia ter feito justiça. Os obituários eram umas carpideiras dessas que cobram por cada lágrima. Reuniam apenas os poucos factos, fazendo dele mais outra baixa nessa guerra mais que fria, aborrecida, a da pandemia. Assim, davam conta que Artur Portela Filho, romancista também, tradutor e publicitário, morreu aos 83 anos, vítima da covid-19. Que tinha sido hospitalizado em Abrantes, com uma pneumonia a que não resistiu. E que mais? Pouco mais, quase nada. Um zumbir de mosca sobre um corpo duro e de tão difícil digestão.
Foi preciso que o próprio presidente da república, Marcelo Rebelo de Sousa, apelasse às musas da tarimba que era ganha nos linguados que tinham o encanto de encher o peito na véspera para o triunfo do dia seguinte, nas bancas de todo o país, valendo-se daquele rasgo atrevido para falar do “seu colega de lides jornalísticas, seu amigo e, às vezes, seu alvo”, caracterizando como “alegórico, sarcástico, paródico, barroco”. Acrescentou ainda numa nota publicada no site oficial da Presidência, que “o Artur Portela cronista é ainda hoje um dos melhores e mais truculentos guias dos anos de transição entre regimes, bem como das vicissitudes da jovem democracia, comentando a actualidade de forma mais empenhada do que na ironia distante que identificamos com o queirosianismo.”
Marcelo sublinhou ainda que “os seus contos e novelas constituíram uma tentativa portuguesa de diálogo com o nouveau roman francês (…). Mas foi como jornalista, colaborador de vários jornais, diretor do Jornal Novo e da revista Opção, e sobretudo como cronista, que se notabilizou”. Já o seu antecessor, Jorge Sampaio, assinara uma nota, em novembro de 1976, no 5.º volume de “A Funda”, a edição em livro das crónicas políticas que Artur Portela publicou, ao longo dos anos, nos diversos jornais em que colaborou, e ali elogiava-lhe aquele exercício, que se distinguia por uma “eficiente acutilância, que vai saudavelmente demolindo as pseudo-personalidades, os prestígios formais e de cúpula, as vaidades provincianas na cidade, os esquemas e as clássicas influências de campanário”. Sampaio sublinhava ainda que, “estando, como de costume, em cima dos factos, o 25 de Abril veio permitir a Artur Portela alicerçar as suas análises, e agora às claras, sem mordaças que vitimaram tantos dos seus escritos, numa perspectiva de esquerda que dia a dia se torna mais evidente e acessível. Portela representa assim um poderoso instrumento de classificação e esclarecimento político e social.”
Nascido em 1937 numa família de escritores e jornalistas, herdou do pai o nome, Artur Portela, e, por isso, para o distinguirem, acrescentou o Filho. Formou-se em História, mas não tardou a exigir a sua iniciação nos jornais. Era talvez o único registo em que da véspera para o dia seguinte a sombra de um homem podia intrometer-se nas coisas, as obsessões e o apuro da linguagem, mesmo nas entrelinhas, podiam provocar irritações na pele da alma. E terá sentido como tantos o apelo do mundo das redacções, esse ambiente “povoado de seres misteriosíssimos”, diz Nelson Rodrigues. Num negativo dos nossos dias, em que nas águas da liberdade bastou deitar mais detergente, nos tempos em que as inteligências mais fulgurantes eram obrigadas a ensaiar os seus golpes na clandestinidade das meias palavras, reconhecia-se nalguns jornais “uma paisagem fascinante e espectral como se os redatores, mesas, cadeiras e contínuos fossem seres submarinos”, diz o cronista brasileiro. “Há peixes azuis, escamas cintilantes, águas jamais sonhadas. De vez em quando, sai de uma caverna um monstro de movimentos lerdos e pacientes. E passa um peixe sem olhos, que emana uma luz própria.”
Uma vez que os jornais se aliviaram dos melhores espíritos que aquela escola produziu, não espanta que o único obituário digno desse nome – na verdade um texto notabilíssimo –, não se acoitando no tímido exercício de elencar os títulos por onde Artur Portela passou, e aqueles que assinou, apareceu num blogue, assinado pelo jornalista Gonçalo Pereira Rosa. Ali nos diz como Portela entrou de bibe na redacção do Diário de Lisboa, que foi o prolongamento da escola que frequentava ao fundo da Rua Luz Soriano. “Era o Arturzinho, o filho de Artur Portela, cronista jactante das artes e letras desde a fundação do jornal. Esse rótulo aborrecia-o. Para muitos, um apelido famoso seria uma bênção, um abre-latas de oportunidades. Para Artur Portela Filho, implicou durante décadas o ónus da comparação.”
A atitude honesta perante o texto de Pereira Rosa nem é citar uns bocados, mas pedir ao leitor que o leia na íntegra. Chama-se “Portela, um gigante contrariado”. Entre episódios absorventes e bastante esclarecedores, num exemplo de testemunho raro que exige convivência, atenção, generosidade, o jornalista diz-nos que “nas redacções por onde passou, [Portela] recolhia admiração e ódio. Bastava uma crónica para se perceber que estava ali um pequeno génio. Dominava a língua e as figuras de estilo como poucos. Fez-se cronista ímpar, talvez o melhor do século – o que não é pouco. Mas zombava dos que não conseguiam escrever como ele. Tinha uma altivez irritante ao primeiro contacto.”
É mais do que uma homenagem porque traça um retrato honesto, profundo, cheio das dimensões que tornam palpável um carácter corajoso e complexo, o de um homem que deu muito ao jornalismo, “um jornalista que criou o seu próprio carril, que mais nenhuma locomotiva conseguiria trilhar”, mas que acabou por “institucionalizar-se”, e por “entrar no mundo da publicidade e do dinheiro”, no início dos anos 1970. Ainda fundou o Jornal Novo, onde, “durante meses, foi o cronista mais lido e respeitado do país”, seguiu-se a revista Opção, mas depois, “a sua intervenção pública passou a ser feita através de livros-entrevista (maravilhoso o volume com José Cardoso Pires) e da ficção (nem sempre bem-recebida pela crítica)”. No fim, fica a sensação de é um dos perfis que se destacam entre os vencidos do jornalismo, um desses que se deu conta a tempo do naufrágio, e se pôs a salvo, saltou borda fora, para não ir ao fundo e ver os seus últimos esforços e o próprio corpo entregue como comida a estes peixinhos de aquário.