No ano passado lemos para os nossos filhos a versão original do Pinóquio, de Carlo Collodi, escrito há 139 anos. Todas as noites líamos um bocadinho, omitindo por vezes alguns excertos mais cruéis – a versão original tem episódios dignos de um filme de terror. Ficaram muito tristes quando, passado alguns meses, acabámos a história. Acho que de alguma forma se foram identificando e aproximando daquela personagem endiabrada de bom coração.
Esta semana vi o filme, de Matteo Garrone, baseado no livro. É fabuloso. Sobretudo por representar tão bem a dinâmica emocional da obra, que é tão próxima da realidade.
Pinóquio nasce de um irrequieto toro de madeira. Depois de esculpido com todo o cuidado e ternura, pelo seu dedicado pai, o boneco ganha vida e mais rápido do que o seu criador desejaria, já corre pelos campos fora cheio da energia, alegria e curiosidade, tão próprias das crianças. Gepetto, pela idade é mais próximo de um avô do que de um pai, mas acaba por ter semelhanças com os dois. De uma vida pacata e um pouco vazia, ganha um objetivo que o faz largar tudo: cuidar do filho. Já visivelmente cansado, é comovente assistir à sua ânsia de cuidar do descendente, encontrando pouca recetividade no inquieto boneco, empolgado com todas as novidades e apelos da vida. Apesar dos sucessivos conselhos de Gepetto, do grilo falante – que é uma espécie do seu superego – e da fada, Pinóquio tem de experimentar a vida, de a ver com os seus próprios olhos, de falhar e de ser enganado algumas vezes para depois decidir o que quer. Depois de um amadurecimento rápido, com uma série de episódios simbólicos – como a transformação em burros daqueles que são aliciados pelos prazeres da infância, abdicando dos deveres da escola – o boneco decide finalmente procurar Gepetto. Quando o reencontra é a vez de ser ele a salvar e tratar do pai, retribuindo todo o cuidado e carinho que este lhe dedicou. No final é-lhe oferecido o prémio pelo seu bom comportamento – ou mais por ter amadurecido, pois Pinóquio sempre foi um bom menino, além de curioso e inquieto, como é suposto na sua idade – e é transformado num menino de verdade. Corre em êxtase para dar a notícia ao seu Babo e os dois abraçam-se em plena felicidade: ambos tinham feito um excelente trabalho. A diferença de idades é comovente, imaginamos que Pinóquio voltará a ficar sozinho mais cedo do que gostaria, mas terá sempre com ele o amor e dedicação do pai, que foi fundamental em todo este processo, que lhe deu segurança para partir e crescer, mas também vontade de regressar. Gepetto terá cumprido o seu melhor trabalho de carpintaria – há também semelhanças com José, pai de Jesus, e da fada com Maria, que aliás o transforma em menino numa espécie de gruta, rodeados de ovelhas, que em tudo se assemelha à imagem que temos da manjedoura onde nasceu Jesus.
Todo o enredo é uma representação fantástica de alguns aspetos do crescimento das crianças e da relação entre pais e filhos. Os primeiros dedicados e ansiosos por ajudar, os segundos a crescer na ambivalência entre o desejo e o dever. Quando pai e filho parecem condenados a nunca mais se reencontrar, eis que o amor que o criador sempre dedicou ao boneco o faz ter vontade de regressar, quando sente que é altura. O amor aos filhos é essencial, para que cresçam com segurança e capacidade para enfrentar todos os gatos e raposas que há por aí. Para que sintam que independentemente dos disparates e escolhas que possam fazer, o abraço dos seus carpinteiros está sempre à espera de os receber.