O artista plástico Paulo Kapela, que se tornou “um mestre artístico e espiritual para uma nova geração de artistas” angolanos que se afirmaram além-fronteiras, morreu na terça-feira, aos 73 anos, depois de ter testado positivo à covid-19, tendo sucumbido após um internamento de dez dias na Clínica Endiama, na Ilha do Cabo, em Luanda. ‘Papá Kapela’, como era tratado de forma carinhosa, era um orgulhoso e inspirado autodidata, nascido em 1947, em Maquela do Zombo, na província do Uíje, fugiu do seu país, e chegou à capital angolana em 1996, tendo assumido um papel preponderante no contexto artístico daquela cidade, isto apesar de mal falar português, expressando-se mais em francês. Essa capacidade de, não apenas se enturmar, mas de cativar e mobilizar ao seu redor uma comunidade criativa ficou a dever-se, segundo a crítica de arte e curadora alemã Nadine Siegert, ao seu carisma bem como ao “seu modo pouco ortodoxo de viver”, que passa por habitar artisticamente os lugares, criando uma atmosfera que reflecte o seu universo tão pessoal. E este ganhava expressão através da sua forma tão peculiar de criação, com as suas instalações a nutrirem-se da “combinação de objetos díspares e até discordantes para a criação de novos contextos”, explica a chefe adjunta do Iwalewahaus, museu e centro de pesquisa dedicado à arte e cultura africana da Universidade de Bayreuth (Alemanha).
“Homem modesto, mas de incalculável magnitude artística”, destacou a mensagem de condolências do Ministério da Cultura, Turismo e Ambiente, “sempre viveu em condições adversas, primeiro no edifício da UNAP, União Nacional dos Artistas Plásticos, depois no Beiral, tendo passado ainda pelos bairros Palanca e Vila Alice".
Kapela começou a pintar em 1960 na Escola Poto-Poto, em Brazzaville, República do Congo. Depois de fugir do seu país, foi quando se integrou na comunidade artística angolana que a sua obra conheceu uma maior visibilidade, mesmo fora do país, a partir de meados de 2000, quando, em 2003, vence o prémio CICIBA — Centro Internacional de Civilização Bantu, em Brazzaville ou através da participação em inúmeras exposições coletivas quer no continente africano quer na Europa. Destas destacam-se a Trienal de Luanda, a representação angolana à 52ª Bienal de Veneza em 2007 — concretizada na exposição Check List Luanda Pop — as exposições itinerantes Africa Remix (2004-2006) e Réplica e Rebeldia (2006) Luanda Smooth and Rave em Bordéus (2009) ou mais recentemente No Fly Zone em Lisboa (2013). Contudo, como refere Nadinie Siegert, apesar da projecção internacional que o seu trabalhou alcançou, este “apenas se pode compreender no contexto local, ou seja, no seu ateliê no centro da cidade de Luanda”. E a curadora alemã, que conhecia bem esse ateliê, soube exaltá-lo de forma memorável num texto que escreveu para a plataforma digital Buala, a qual nasceu há dez anos impulsionar as reflexões sobre os cenários do pós-colonialismo.
Siegert diz-nos que no atelier do Mestre Paulo Kapela, só entrava quem soubesse chamá-lo através de uma entrada quase invisível, e que, “ao aceder ao seu ateliê, parece que se chega a um outro mundo, mas também a uma espécie de igreja. Através do telhado em destroços podemos ver parte do céu, acentuando este ambiente único. De repente estamos num labirinto que consiste em inúmeros objetos de diferentes origens, como latas, brinquedos e flores de plástico. O espaço de Kapela é preenchido por arranjos surreais de coisas encontradas na rua, usando inimagináveis elementos para criar representações de seu universo interior, que combina a filosofia Bantu, o Catolicismo, o Rastafarianismo e iconografias socialistas com um forte sentido de louvor à cultura local. Elementos profanos, por exemplo anúncios publicitários, são colocados ao lado de objetos religiosos tais como crucifixos e velas. Entre as obras de arte há muitos quadros de vários tamanhos, fabricados ao estilo da escola de Brazzaville Poto-Poto, onde Kapela trabalhou antes de vir para Luanda. Mas o que realmente chama a atenção são as inúmeras colagens, retratando personalidades da vida de todos os dias, mas também políticos e pessoas da mídia internacional”.
Siegert destaca ainda a importância que o trabalho de Kapela “no contexto da reconciliação entre as culturas europeia e africana e para re-lembrar e re-estruturar uma sociedade fraturada e amputada após os anos de guerra”. “Ele tenta encontrar um equilíbrio entre os elementos discordantes, ‘le balance entre le peixe e le maniok’, como referiu ao falar sobre sua filosofia. Assim, todo o espaço do artista pode ser considerado uma instalação, capaz de combinar o passado e o presente da sua vida pessoal, bem como do país. Kapela recria esta história nas suas obras através da sua perspectiva bem original, que combina narrativas reais e surreais, narrando pesadelos e utopias de Luanda.”