Portugal assume a 1 de janeiro a presidência da União Europeia por seis meses. O grau de incerteza é grande, depois do bloqueio a um acordo para o plano de recuperação por Hungria e Polónia, mas a fasquia para Portugal é alta. Foi o próprio David Sassoli, presidente do Parlamento Europeu, a colocá-la, ao manifestar-se confiante num «grande êxito» português para os próximos seis meses. Mas tudo depende do Conselho Europeu desta semana, nos dias 10 e 11. A ordem é clara: o primeiro-ministro quer ver tudo resolvido para acelerar a entrada da chamada «bazuca» europeia.
«Não há plano B. Não podemos estar sempre a reabrir aquilo que concluímos. Sem um orçamento, a Europa paralisa, e isso seria acrescentar crise à crise», avisou Costa esta semana. E nem há margem para reabrir o acordo alcançado em julho. O que for alcançado este mês pode condicionar a estratégia de Portugal numa presidência que pode ficar para a história, com a gestão da estratégia pós-covid, a vacinação, o pilar de aprofundamento da chamada Europa social e a autonomia estratégica da UE.
Se tudo correr bem à presidência alemã este mês (o quadro não é favorável), Costa pode liderar os dossiês mais importantes nos próximos seis meses e deixar a sua marca (como fez José Sócrates, por exemplo, em 2007, com a assinatura do Tratado de Lisboa), ao lado do ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva – isto enquanto, no Governo, a gestão das dificuldades internas poderá ficar a cargo de Pedro Siza Vieira, ministro de Estado e da Economia. O centro de operações da presidência portuguesa da UE será no Centro Cultural de Belém, tendo sido ontem apresentados a imagem e o logótipo.
«Esta próxima presidência de Portugal deverá ser uma presidência de gestão. Como pode imaginar, seis meses é um tempo muito limitado para avançar com grandes projetos europeus. E também sabemos que a força que um pequeno país como Portugal tem não é equivalente, por exemplo, ao da Alemanha», afirma a historiadora Alice Cunha, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI-NOVA), que dedicou muito do seu trabalho às presidências portuguesas da EU.
«Até se fala das presidências do ‘queijo numa sanduíche’. Ou seja, pequenos estados cujas presidências estão entre as dos grandes e fecham grandes dossiers», explica. «Provavelmente, o marco distintivo desta presidência de Portugal será a aposta no pilar social europeu, algo que vai em linha com o programa da própria Comissão Europeia, que tenciona apresentar o seu plano de ação neste domínio no próximo trimestre. O objetivo é criar uma maior igualdade de oportunidades e acesso ao mercado de trabalho, de maneira a impedir que a crise sanitária e económica causada pela pandemia se transforme também numa crise social»
Confronto com o Leste
Contudo, face ao bloqueio do orçamento pela Hungria e pela Polónia, que ameaçam utilizar o seu veto por recusarem aceitar um mecanismo de proteção do Estado de direito, a situação não está fácil. Caso se concretize o bloqueio, «a alternativa é entrar num mecanismo de duodécimos», avisa a eurodeputada socialista Margarida Marques, ao SOL. «Rejeitamos isso, porque janeiro de 2021 é diferente de janeiro de 2020, os desafios são outros».
«E por isso é que estamos a desenvolver todos os esforços para que possa haver uma ratificação – e friso ratificação – do compromisso político assumido entre o Parlamento Europeu e o Conselho Europeu», salienta a eurodeputada.
«O primeiro-ministro tem sido muito claro desde o Conselho Europeu de julho. As conclusões desse conselho, que levaram cinco dias e quatro noites a serem acordadas, devem ser respeitadas».
O problema é que, em junho, a posição de António Costa parecia um pouco diferente, quando foi visitar a Hungria de Viktor Orbán. Na altura defendeu que o Estado de direito não deveria condicionar a atribuição de fundos comunitários – declarações em linha com as ambições desses países de leste, contra boa parte dos seus parceiros europeus. Noutros quadrantes políticos multiplicam-se as críticas à atuação do primeiro-ministro.
«A visita a Orbán naquele momento tem um significado, não se compreende porque a fez, não havia necessidade nenhuma», critica o eurodeputado Paulo Rangel, que acusa o primeiro-ministro português de ceder a Budapeste e a Varsóvia na altura, dias após defender o contrário, quando visitava o primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, líder dos chamados países ‘frugais’, contribuintes líquidos da UE e os maiores defensores do escrutínio dos fundos europeus.
«Há aqui contradições muito grandes no comportamento europeu de António Costa», assegura Rangel, considerando que isso deixou o primeiro-ministro português num estado de «alguma fragilidade» nas negociações.
«Portugal criou uma narrativa nebulosa. Por um lado, diz que em caso nenhum quer mudar o acordo alcançado, e é positivo que o diga. Mas, como antes disse o contrário, não existe confiança clara na posição portuguesa».
«Parece que a direção do PSD também tem uma posição de, pelo menos, compreensão para com essa anterior posição de Costa, ao dizer que tem dúvidas de que o Estado de direito e o orçamento devam estar ligados. Mas, sinceramente, também acho isso mal».
Quem discorda de Paulo Rangel é o eurodeputado do CDS, Nuno Melo, que a propósitos das críticas a abusos de direitos humanos e do Estado de direito na Hungria e Polónia lembra ao SOL que «a Europa é um mosaico, e esse mosaico parte de realidades sociológicas completamente diferentes». «A forma de ver a vida e o mundo na Finlândia não é a mesma que em Portugal. Somos povos diferentes. E não devemos arvorar uma superioridade quando avaliamos os outros, como se o nosso ponto de vista fosse o único verdadeiro e o ideal». «A violação do Estado de direito não acontece porque António Costa quer, ou qualquer outro dirigente ou governante da União Europeia», considera, numa aparente referência ao facto de que, no mecanismo de Estado de direito acordado pela UE, a avaliação passaria pelo Conselho Europeu, onde estão todos os chefes de Executivo. «Acontecerá de cada vez que, no âmbito dos tratados, a questão for suscitada, verificada e com respeito pelo princípio do contraditório. Depois disso, haverá sanções. O resto são apreciações».
Já para o PCP, o problema é ainda mais de fundo. «É importante sublinhar que se a União Europeia constituísse um real processo de solidariedade e cooperação, não estaríamos, um ano após a eclosão de uma pandemia, a assistir a uma arrastada discussão sobre a dita ‘ajuda’», refere o partido, em comentário por escrito ao SOL. «É esta realidade e as suas consequências que estão na origem de fenómenos como o do crescimento da extrema-direita e da chegada ao poder de forças abertamente reacionárias e fascizantes, como são os casos da Hungria e da Polónia», continua o partido, que à semelhança de Costa em junho, opõe-se a ligar o Estado de direito aos fundos europeus. «Impor ainda mais condicionalismos aos Estados, reforçar o poder do eixo franco-alemão ou mesmo instaurar uma espécie de ‘pacto de estabilidade’ político e ideológico em nome do combate à extrema-direita só terão como consequência o reforço destes fenómenos», conclui.
Entretanto, no debate parlamentar sobre a preparação do Conselho Europeu, Costa insistiu em afastar qualquer leitura de que Portugal tenha estado ao lado da Hungria ou da Polónia. «Aquilo que digo aqui, no Conselho e disse em Budapeste é que os critérios de Copenhaga, que servem para adesão à União Europeia e que estão espelhados nos valores fundamentais que constam no artigo 2.º do Tratado de Lisboa, não são meros requisitos para aceder a fundos comunitários, são requisitos para a pertença à UE».
António Costa, coerente ou refém de Macron?
Mas, afinal, como se explica a aparente mudança de posição de António Costa nos últimos meses? «Hoje, os 25 países estão completamente unidos na defesa do acordo político entre o Parlamento e o Conselho Europeu», justifica Margarida Marques. «Nem António Costa foi mais tolerante em relação à Hungria e à Polónia antes do Conselho Europeu, nem é agora quem tem a posição mais radical».
«Este é um mecanismo de Estado de direito que procura defender o orçamento europeu. É isso que é preciso entender: não é um mecanismo global, não é o fim da linha. Procura sobretudo assegurar o bom uso do dinheiro europeu», explica a eurodeputada. «Por exemplo, nas questões do combate à corrupção, uma coisa essencial é a autonomia dos tribunais administrativos. É uma questão que tem a ver com o Estado de direito, faz sentido colocar-se neste mecanismo e está lá».
Outros têm explicações diferentes para o volte-face de António Costa, talvez até o sonho de um futuro cargo europeu. «Fala-se da tal campanha europeia, diz-se muito que António Costa está a pensar num futuro europeu, e provavelmente seria para conseguir esses apoios», comenta Paulo Rangel. E conclui: «Mas, sinceramente, hipotecar coisas fundamentais como o Estado de direito para esse tipo de cálculos… Não sei. Há aqui uma ambiguidade estranha».