Pelos 250 anos de Beethoven (1770-1825), a Caminho reuniu, em um único volume, os ensaios ‘A vida de Beethoven’ (1943) e ‘A personalidade de Beethoven (Ensaios Beethovianos)’ (1947), de Luís de Freitas Branco (1890-1955), publicados, originalmente, na Biblioteca Cosmos, coleção criada, em 1941, sob a direção de Bento de Jesus Caraça. Eis, pois, a interpretação, por um dos maiores nomes da música portuguesa, do compositor genial, «um guia e um modelo numa época como a presente» – Freitas Branco escreveu estes ensaios durante os anos sombrios da II Guerra Mundial – «de crise das mais profundas raízes morais da humanidade»
1. Não se conhece exatamente o dia em que nasceu, mas sabe-se que foi batizado a 17 de dezembro de 1770, com o nome de Luiz, como o padrinho. Filho de João van Beethoven e Maria Madalena Keverich, Ludwig van Beethoven, o «maior dos compositores», viria ao mundo em Bonn, Reino da Prússia, Renânia (Alemanha) – região na qual os batizados costumavam ser realizados no dia seguinte a um nascimento.
Aquele que o seu pai educaria «para menino prodígio» teria como padrinhos o avô paterno (que viria a falecer quando Beethoven tinha apenas três anos) e uma vizinha. Dos seus sete irmãos, cinco morreram na infância. A casa onde nasceu é hoje o Museu Beethoven.
2. Do retrato físico de um dos mais brilhantes compositores de todos os tempos, homem que transformaria a música do seu tempo e abriria portas ao Romantismo, destaca o biógrafo: «Era baixo e entroncado, com os ombros largos. A tez era morena, tornou-se depois avermelhada, e, para o fim da vida, biliosa. Tinha marcas de varíola no rosto […]. Entre o lábio inferior e o queixo, tinha uma profunda cicatriz transversal, resultado de queda ou golpe. O rosto era redondo, cheio, o nariz achatado, os maxilares muito fortes mas sem prognatismo […] a tendência do lábio superior era para avançar ligeiramente sobre o inferior. A testa era larga, as arcadas superciliares bem marcadas. Nas órbitas fundas, os olhos brilhavam com tal fulgor que pareciam pretos, quando eram apenas castanhos. Na boca muito larga viam-se dentes fortes e bem conservados. Tinha-a habitualmente fechada, com os lábios muito compridos. O cabelo extraordinariamente espesso e grosso, negro de azeviche, era indomável. As mãos eram fortes, com os dedos grossos, de cabeça achatada. A posição habitual, quando andava, era de mãos atrás das costas e com o corpo um pouco inclinado para a frente. Seguindo a moda do seu tempo, nunca usou bigode nem barba, apenas pequenas suíças rasas, que pareciam antes patilhas. Teve fases da vida em que se vestiu bem, quase com luxo, mas nunca teve aspecto asseado, principalmente o cabelo. Este já estava grisalho em 1810 e quase branco à data da morte».
Em termos psicológicos, sobreleva-se a alegria em tempos de juventude, forte personalidade e sentido de responsabilidade, capacidade de trabalho, energia e profundidade, seriedade, amor à natureza, austeridade e exigência consigo e com todos, nobreza de carácter e irascibilidade, estilo empolado e índole bondosa, sendo que, desde logo, e no berço, reteve do avô e padrinho «tradições de respeitabilidade e afecto». Desastrado, partia com frequência vidros e loiça e não possuía instinto ortográfico. Devido à surdez, uma certa misantropia é-lhe apontada nos últimos anos de vida.
Descendente de músicos profissionais como o avô – intérprete na Flandres, em Antuérpia, cantor de Igreja em Lovaina e em Bonn, onde foi Mestre da Capela da Corte -, Beethoven viveu num tempo em que a maestria para a música era vista, por muitas famílias, nas esperanças que depositavam nos seus descendentes, como modo de fuga à miséria e o erguer-se na escala social e sua respeitabilidade: «Os proveitos que o pai de Wolfgang Mozart teve como empresário do filho, levou muitos a imitá-lo». Assim foi o caso de Johann Beethoven. O pai de Ludwig, tenor na capela de Bonn e professor de música, prosseguia uma «vida desregrada e hábitos de alcoolismo», sendo um «péssimo chefe de família», tornando-se o filho – para o qual desenhou um plano de estudos feito a escalas e estudos de técnica, a frequentar pela «torturada criança», com os «dedos a sangrar» para ser maximizada – verdadeiro (potencial) abono de família (e, aliás, «o jovem Beethoven era aceite, por todos, praticamente como tutor do pai e nessa qualidade recebia, além do seu ordenado pessoal, metade dos honorários paternos, com a obrigação de sustentar a família».
No primeiro concerto em que participa como executante, Beethoven tem apenas sete anos.
3. Ludwig van Beethoven, dado o descuido paterno, «nada aprende [extra-música] além das matérias leccionadas nas escolas primárias públicas da Renânia», nas quais, refira-se, o latim pontificava. O acontecimento decisivo dos seus anos de aprendizagem foi, em realidade, o início das suas lições de cravo, órgão e composição, com Cristiano Amadeu Neefe. A primeira obra de Beethoven publicada pela imprensa (1783) intitulava-se ‘Nove Variações sobre uma marcha de Dressler’. Seria nomeado substituto do mestre de capela, sem ordenado fixo, em 1784 (ainda com treze anos). Virá, porém, a auferir honorários fixos, como organista da corte, a partir de 1785. Nesse ano, comporia três quartetos para cravo, violino, violeta e violoncelo, ele que aprendera violino com Francisco Ries.
Chegado a 1787, era já manifesto que os muros de Bonn eram curtos para a perícia – «geniais faculdades», no dizer de Luís de Freitas Branco – evidenciada por Ludwig: «Em 1787 já era evidente que Beethoven, embora contasse apenas dezasseis anos, era o primeiro vulto nacional de Bonn e nada tinha que aprender na cidade renana».
É, também, no ano de 1787 que falece, em virtude da tuberculose, a mãe de Beethoven, logo após este ter-se encontrado, em Viena, com Mozart e o Imperador José II. Neste instante, Ludwig, de «índole bondosa» e «carácter rijamente temperado», é assaltado por uma onda de melancolia.
4. Do encontro com Wolfgang Amadeus Mozart terá ficado uma improvisação de uma fuga, ao cravo, por banda de Beethoven, a marcar quem o escutou: «Este moço ainda há-de fazer falar muito de si o mundo», terá adivinhado Mozart.
Em 1789, ano da tomada da Bastilha em França, Beethoven, possuidor de uma «natural rudeza», entra para a Orquestra Eleitoral como violeta, passando não só a tomar parte em concertos sinfónicos, mas também a acompanhar os cantores nos espectáculos de ópera. Sublinhe-se, neste âmbito, que aqueles que rodeavam Beethoven (e este, com certeza, também), eram grandes admiradores da cantora lírica portuguesa Luísa Todi – que esteve em Bonn no Verão de 1790. De resto, a Orquestra da Ópera a que Beethoven pertencia dedicou uma serenata à artista. A 25 de Dezembro daquele ano foi o compositor Joseph Haydn quem chegou a Bonn, incentivando, ali, Beethoven a prosseguir os estudos musicais. Para este último, todavia, Mozart, enquanto músico, era preferível a Haydn.
Em Viena, à época a cidade «mais musical do mundo», Beethoven – que ao longo da vida passaria uma parte do ano na cidade e outra no campo -, que teria lições gratuitas com Salieri (as quais se prolongariam por sete anos, apesar da incompatibilidade artística entre ambos – e com o reconhecimento de que Salieri tinha maiores inclinações pedagógicas do que Haydn), gasta em piano, cabeleiras, professor de dança. Na interpretação de Luís Freitas Branco acerca da personalidade do grande compositor, tratava-se (então) de um homem alegre: «A imagem de um Beethoven sombrio e trágico, que ficou do último e torturado período da sua vida, não corresponde à verdade dos factos na época da mocidade. Beethoven foi alegre, sociável e amigo de divertimentos. Assim era quando chegou a Viena, e só muito mais tarde, em grande parte sob a influência da surdez, se havia de tornar irritável e misantropo».
5. O pai de Beethoven morre em 1792. O irmão Charles tentou carreira de músico, mas desistiu e tornou-se funcionário da fazenda, assentando, pois, carreira na Administração Pública. Quanto a João, foi ajudante de farmácia, mas emigrou para Viena e formou-se na Universidade dessa cidade. Abriu farmácia em Linz, em 1808, tendo feito grande fortuna.
A sonata, assinala Freitas Branco, era a forma preferencial de Beethoven: «A forma sonata moderna, ditemática, era, pois, mais que predilecta; era a expressão natural de um génio incompatível com a seriedade e a regularidade monotemáticas do barroco musical». E, se naquele tempo, a critica musical apenas se usava na imprensa local inglesa (enquanto na Alemanha do século XIX apenas as revistas musicais publicavam tais apreciações), «poderiam subsistir dúvidas, entre os mais esclarecidos dos amadores de música vienenses, sobre qual dos dois, Haydn ou Beethoven, seria o maior compositor instrumental, mas quanto à superioridade deste último como pianista não podiam existir divergências».
6. Facto absolutamente marcante da vida de Beethoven, a sua surdez. A primeira alusão a esta, pelo próprio, data de 1801, num registo escrito no qual o compositor refere que o seu ouvido, no último triénio, tem-se tornado mais fraco. Os seus ouvidos estão, dia e noite, a zumbir: «Para te dar uma ideia desta espantosa surdez, dir-te-ei que no teatro tenho que me encostar à barreira da orquestra para ouvir os actores. Não oiço os sons agudos dos instrumentos e das vozes, se estiver a alguma distância deles […]. Muitas vezes, mal oiço o meu interlocutor: se fala baixo, oiço o som da voz mas não distingo as palavras; no entanto, se gritam, é-me insuportável. […] Já muitas vezes amaldiçoei o Criador e a minha existência; Plutarco ensinou-me a resignação […] [há] momentos da minha vida em que sou a mais infeliz das criaturas de Deus». Estas palavras seguem em um registo epistolar a um seu amigo, a quem, de imediato, solicita segredo (sobre este seu estado de saúde). Porém, por volta de 1802, no meio musical de Viena – uma cidade a abarrotar de gente – ninguém ignorava a surdez de Beethoven (que teria tido a sua origem numa irritação violenta com um tenor, levando-o ao paroxismo, atirando-se ao chão e ficando surdo). Anos mais tarde, o compositor voltava a exasperar-se com o seu estado – «seria feliz, talvez um dos homens mais felizes, se o Demónio não se tivesse instalado nos meus ouvidos» – e quase coloca termo à própria existência.
7. A lenda de Beethoven passa, também, pelo modo, um tanto misterioso, como lidou com o(s) amor(es). De acordo com Luís Freitas Branco, cujo domínio da língua materna de Beethoven o levava a conhecer, no original, todas as grandes biografias (publicadas à data) sobre o grande compositor natural de Bonn, «o temperamento de Beethoven era ardente e sensual»; o grande músico «era austero no modo de encarar o amor, o que chegou a fazer espalhar a fábula da sua absoluta castidade». Em realidade, o autor de Fidélio – única ópera que escreveu -, «muito feio, mas nobre, de bons sentimentos e instruído», vestido «quase sempre pobremente», «tinha em alto apreço as virtudes conjugais», sendo que «podem, pois, classificar-se os verdadeiros amores de Beethoven como isentos de práticas sexuais». Diferentemente, «quando as intenções eram outras [amores sem compromisso, não «verdadeiros»], sabe-se que procurava os amores baixos e mercenários» das meretrizes. Teria, aliás, sido neste contexto que Beethoven terá contraído sífilis (em 1796, ele que, nesse ano, foi à Hungria, após ter estado em Praga).
Entre os possíveis amores de Beethoven – «alguns dos seus contemporâneos disseram dele que conseguira no amor honrosas excepções e que era pouco constante», a «Imortal Bem-amada» (a quem dedica correspondência, que não se sabe se nunca foi remetida, ou se veio devolvida), identificaram-se Giulietta Guicciardi ou Therese Brunswik, a cantora Amalie Sebald ou Therese Malfatti, a também cantora Madalena Willman (a qual referiria que não aceitou casamento com Beethoven, porque este era «muito feio e semilouco»). «Infelizmente – dirá Beethoven – não tenho nenhuma [mulher]. Encontrei só uma, que nunca me será dado possuir».
Escreveu Beethoven, ainda, sobre o amor: «O prazer dos sentidos sem a reunião das almas é e será sempre um procedimento próprio de animais. Um prazer destes não deixa sequer vestígios de um sentimento nobre, antes arrependimento».
8. Beethoven ensinou as suas composições «com infinita severidade». Meticuloso, preso ao detalhe, perfeccionista, exigia tudo dos seus estudantes/aprendizes: «Olhava aos mais insignificantes pormenores para que a execução fosse perfeita […]. Era muito brutal: atirava as músicas ao ar e rasgava-as». Não aceitava remuneração pelas lições, mas anuía na dádiva, que lhe faziam, de roupas (como compensação pelo ensino da música). «Ao mínimo ruído enquanto executava, levantava-se e partia».
A preocupação com o vil metal não seria despicienda ao longo da sua vida – só em 1809 alcança independência material e por pouco tempo -, ele que «foi sempre miúdo e até desconfiado em questões de dinheiro que tratava, aliás, com a mais escrupulosa exactidão». Teve criados, criadas, governantes e cozinheiros, não sendo por falta de meios que esteve sem pessoal e obrigado a cozinhar para si próprio. Dotado de um «temperamento excessivo em tudo», e numa época e sociedade educadas em «princípios nada semelhantes às modernas teorias humanitárias», Beethoven «batia nos criados», ficando temporadas sem conseguir encontrar quem para ele trabalhasse (nas funções domésticas). De resto, «num caderno de cerca de 1820, vê-se, pela resposta, que Beethoven tinha perguntado se uma boa sova não chamaria à razão uma criança rebelde. O mestre chegou a levantar uma pesada poltrona para dar com ela num criado ou numa criada. Também partituras e livros foram atirados à cabeça dos servidores, em acessos de fúria». Numa palavra, «desconfiado […], violento e frequentes vezes injusto, não devia pertencer ao número dos perfeitos patrões». Numa das sucessivas habitações que foram seus lugares de poiso – em virtude da mudança das estações, da sua ida e vinda do campo, da sua vida material ou de sua família, porque muito cedo passa por diversas casas -, a senhoria «queixava-se do mau génio do artista e tratava-o mal», aludindo a ele não pelo nome próprio, mas por ‘der Narr’ (‘o maluco’).
Com a morte do irmão Carlos, ficará a tutelar um seu sobrinho (de nove anos), o qual lhe dará muitos desgostos, tendo consigo vivido em várias ocasiões, mas, igualmente, a ele fugindo em outras tantas circunstâncias (e só passando a ter carreira e vida regulares após a morte do tio; com grande sacrifício material, Beethoven colocará o sobrinho num colégio interno, ao mesmo tempo que afastará a mãe do rapaz de intervir na sua educação; o filho de Carlos tenta o suicídio, mas acabará por ingressar no regimento de Inglau). A «grande seriedade» de Beethoven é «o timbre essencial do seu génio», segundo os seus contemporâneos.
Na regra quotidiana que impôs a si mesmo, no primeiro almoço, pela manhã, que aliás gostava de preparar, sobressaía o cuidado e a preferência pelo café, destinando, sem falhas, 60 grãos a cada pessoa (quando tinha companhia no mesmo). Macarrão com queijo parmesão fazia parte do menu. O mestre almoçava pelas duas da tarde, mas as horas eram mal observadas, pois que quando compunha não podia, de modo algum, ser interrompido. Sopa com sobras do almoço era a sua ceia. De acordo com testemunhos que chegaram até aos nossos dias, «o peixe era o seu alimento predilecto» e, neste, a preferência ia para as trutas. Gostava muito de caça e dos vinhos austríacos (os vinhos húngaros eram-lhe prejudiciais à digestão). Bebia moderadamente. A água fresca da nascente, em todo o caso, era a sua bebida preferida, ainda que não deixasse de apreciar um bom copo de cerveja à noite, no café, enquanto fumava um cachimbo e passava a vista pelos jornais. Nos últimos anos de vida, chegou a abusar da bebida (altura em que se registaram as poucas orgias em que se viu envolvido ao longo da existência).
No esboço acerca da figura de Luiz de Beethoven, um alto funcionário francês descreveria, com pormenor, o que observou na casa e quarto daquele: «Façam ideia do que há de mais sujo e de mais desarrumado; poças de água cobrindo o sobrado, um piano de cauda cheio de pó e carregado de papéis de música manuscrita e gravada […] As cadeiras, quase todas de palha, estavam cobertas de pratos com restos de comida da véspera e de peças de vestuário».
No Verão de 1812, dá-se o seu encontro com Goethe – o poeta não partilhava o gosto conservador do compositor por espetáculos com animais amestrados -, que registaria (para com a sua mulher): «Nunca vi um artista mais senhor de si, mais enérgico, mais profundo. Compreendo muito bem que um homem destes esteja admiravelmente em face do mundo» . A Franz Liszt, que lhe foi apresentado por Czerny, que era professor do pequeno prodígio, previu um futuro brilhante. «Vais dar felicidade e alegria a muita gente. Não há nada melhor nem maior do que isso», disse ao pequeno Liszt, então com onze anos. Estaria, ainda, com Rossini. O compositor favorito de Beethoven seria Haendel.
9. Beethoven é contemporâneo da revolução francesa de 1789. Um aristocrata seu amigo deixou escrito, ademais, que a política era o tema de conversação preferido por parte do génio musical, indo ao ponto da obsessão («a política era o assunto predilecto das conversas de Beethoven»). Do ponto de vista político, «o mestre, que era provavelmente maçon e sem dúvida liberal, sentia-se, como todos os que naquele tempo comungavam tais princípios, atraído pela França e pelo que parecia haver de revolucionário na causa napoleónica». Neste contexto, o biógrafo sublinha: «As ideias humanitárias eram uma das bases, e porventura a mais importante, da concepção que Beethoven tinha do mundo e da vida». A 9ª Sinfonia, «majestoso edifício sonoro», que apelava aos versos de Schiller em chave de fraternidade (dos humanos; note-se que Schiller terá pensado na palavra «liberdade» onde escreveu «alegria», para que a censura não lhe proibisse o poema), traduziria o seu pensamento: «Nenhuma obra de Beethoven, nem mesmo o Fidélio, traduz tão perfeitamente o seu pensamento liberal e humanitário como a 9ª Sinfonia».
Sem embargo, o rebuliço em França era contraditório com os meios frequentados pela família de Beethoven e, em realidade, não se conhecendo, em rigor e por completo, os ideais políticos daquele que, «como criador musical, possuía em grau assombroso o dom da forma», crê-se que aderia aos princípios daquela revolução de finais do século XVIII, mas não eram do seu agrado múltiplas consequências da fase do terror que aquela atravessaria. Mais, quem não fosse inimigo da França de Napoleão não poderia manter relação de amizade com Beethoven. Simultaneamente, admirava os heróis da república americana: «Divergia de certas consequências da Revolução Francesa, mas não dos princípios e admirava incondicionalmente Franklin, Adams, Washington, heróis da República americana».
Aparentemente, Beethoven cumpria os deveres de católico – sendo incensada a sua índole moral pelas autoridades locais (que, de contrário, não sendo conforme o credo católico o comportamento do jovem músico, e em um meio pequeno, não lhe teriam confiado missão alguma). Em todo caso, adesão interior ou mera observância ritual do catolicismo? «A visão do universo, própria de um católico romano, deve ter sido, quanto aos actos exteriores, a de Beethoven, durante a época de permanência na sua terra natal», diz Freitas Branco. O seu melhor amigo, Franz Wegeler, pertencia à maçonaria, e terá procurado influenciar a filiação de Beethoven em tal instituição. Os ideais religiosos deste poderão ter a sua fonte no deísmo e não nas leis da Igreja, pairando, de acordo com testemunhos seus contemporâneos, a dúvida sobre a sua adesão à divindade de (ou presente em) Jesus de Nazaré. Entusiasmou-se pelas velhas civilizações orientais e leu com atenção o misticismo hindu.
E, no entanto, assomando o terrorismo gaulês às terras germânicas, Beethoven refugia-se na sua religião de infância, o catolicismo. Às portas da morte, em virtude de uma cirrose atrófica do fígado», sendo-lhe diagnosticada uma «hidropisia», solicita os últimos sacramentos: «Quero-o».
Beethoven foi um profundo amante da natureza – «os grandes vultos da Humanidade foram, em geral, amigos da Natureza; o amor de Beethoven pela vida ao ar livre não constitui pois excepção, principalmente na época em que viveu, dominada pela filosofia naturista de Rousseau; mas poucos, de entre os grandes génios da música e das restantes artes, levaram esse amor ao grau sentido e manifestado pelo autor de Sinfonia Pastoral» e convictamente anti-militarista. Certo dia, vendo um militar, comentaria: eis «um escravo que vendeu a liberdade por cinco Kreutzer diários». Acreditava na «fraternidade universal» mas, ao mesmo tempo, era «ardentemente patriota». Em suma, em que acreditava Beethoven? Na síntese de Freitas Branco, «deísmo, amor da natureza, solidariedade humana».
Para o biógrafo, é claro que, através da música, Beethoven procurou «traduzir a vida, o sentir da humanidade, o universo». Assim, «a sua música não é um passatempo para uma sociedade de ociosos influentes: começa a ser um meio de comunicação entre homens conscientes, dignificados pelo trabalho produtivo». Freitas Branco estabelece, mesmo, um antes e um depois de Beethoven na música: «A música instrumental era, antes de Beethoven, arte de entretenimento; passou com ele a ser uma visão do universo; mais: a sua luta por uma visão do universo. O que são o primeiro e o terceiro andamentos da 5ª Sinfonia, o primeiro andamento da Sonata Kreutzer, a 9ª Sinfonia, a Sonata Appasionata, senão resultados geniais dessa soberana aspiração?».
10. Beethoven que, devido à surdez, muitas vezes se afastava do século e do convívio humano – «só, completamente só» -, amava a leitura, «considerando a cultura literária indispensável aos artistas»: «sem de modo algum ter pretensões a sábio, tenho-me esforçado desde criança por assimilar o que existe de melhor e de mais acertado em cada século. Que a vergonha caia sobre os artistas que não considerem um dever cultivar a inteligência». Plutarco ensinara-lhe a resignação. Refere-se, igualmente, à influência em si exercida por Tácito. Anotou leituras das tragédias de Eurípedes. Homero pertencia à esfera dos seus favoritos. Inclina-se mais para Kant e Herder do que para Goethe (embora o tenha admirado como poeta). Conhecia Diderot. Escreveu cartas a mais de duas dezenas de poetas seus contemporâneos. Teve relações pessoais com alguns deles. Entre as trocas epistolares, neste domínio, destacam-se as que manteve com o filósofo e teólogo Schleiermarcher, grande vulto da literatura alemã. Em realidade, «Beethoven lia muito: em casa, no campo, ao ar livre e até deitado […]. [Não obstante] o mestre nunca possuiu a quantidade suficiente de livros para que se dissesse com verdade que era dono de uma biblioteca». Schindler, o secretário do genial compositor, chama à pequena livraria de Beethoven ‘Handbibliotek’, isto é, biblioteca de mão, livros de uso corrente.
Com efeito, «no princípio de todas as revoluções está um movimento de ideias, e estas resultam naturalmente da cultura literária». Ora, ao longo dos anos, Beethoven alcançara um «apurado gosto literário, emparelhando com os escritores do mais decidido e atrevido modernismo», sabendo impor-se «pela elevação da sua mentalidade, aos grandes intelectuais com quem convivia».
O Hércules que «rompeu as colunas divisórias entre o rococó e a Idade-Nova», insistia: «É sem dúvida o dever de todo o compositor em geral conhecer os poetas antigos e modernos e possuir os conhecimentos necessários para, por si só, poder escolher, no que diz respeito à música vocal, os textos melhores, mais adequados e que mais perfeitamente correspondem às suas intenções artísticas».
Queria o sobrinho como homem de ciência ou artista criador: «O rapaz tem que ser artista criador ou homem de ciência, para viver uma vida elevada e não soçobrar na vulgaridade. Só o artista e o sábio livres podem trazer em si a sua própria felicidade».
No prefácio ao escrito de Luís Freitas Branco, Paulo Ferreira de Castro faz notar como o biógrafo acomete e interpreta Beethoven sob o prisma da vocação sacrificial do artista, com papel de tipo messiânico na marcha da humanidade rumo à liberdade.
11. Beethoven foi, no seu tempo, bastante célebre e considerado. Tendo morrido, após um longo e agitado delírio, às 5 horas do dia 26 de março de 1827, foi a enterrar às 3h da tarde de 29 daquele mês. 20 mil pessoas acompanharam o enterro e teve de ser requisitada força militar para conter a multidão. No dia do enterro, fecharam, em Viena, as escolas, o Conservatório e os Estabelecimentos de Música. O último trabalho musical completo de Beethoven – que detestava intérpretes frios – foi «o final do quarteto de cordas op.30». Ao ouvir dele o andamento inicial da Quinta Sinfonia, Goethe diria a Mendelssohn: «Sinto-me como se a abóboda celeste tivesse caído sobre mim».