Faltam agora poucos dias para o primeiro Natal da pandemia da covid-19 – com a expectativa de que no próximo ano o cenário seja já diferente, com a vacina, o presente de última hora de um ano dominado pela incerteza. Com a epidemia a ceder menos do que o esperado, o Governo decidiu na quinta-feira manter a folga no Natal e não avançar com uma interdição de deslocações por concelhos que vigorou na Páscoa e já nesta segunda vaga da pademia tanto no fim de semana do feriado do dia de Todos os Santos e nos dois fins de semana prolongados de dezembro, apertando no entanto as medidas para o Ano Novo.
Agora sem interdições e com as decisões nas mãos das famílias, as expectativas dividem-se entre o bom senso no cumprimento mas também a certeza de que haverá um aumento de casos depois deste período de maior convívio.
Esta semana não chegou a haver reunião no Infarmed (voltam no início de janeiro), mas os peritos que aconselham o Governo foram ouvidos pela ministra da Saúde antes de o Executivo decidir.
Manuel Carmo Gomes, epidemiologista da Faculdade de Ciências de Lisboa e consultor da Direção-Geral da Saúde, explica que em relação à semana passada mantém-se a mesma tendência: a epidemia continua com uma trajetória descendente a nível nacional, mas muito ligeira (-0,5% quando na última reunião do Infarmed a expectativa transmitida ao Governo e Presidente da República foi de que se procurasse uma redução diária de casos de pelo menos 2%). Os cálculos da FCUL são de que o RT nacional ronda os 0,99.
O Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge divulgou ontem as mais recentes estimativas, para o período de 9 a 12 de dezembro. A nível nacional, o RT situava-se nos 0,98, idêntico ao de há uma semana. Mas a tendência é decrescente apenas na região Norte, onde se viveu uma epidemia mais intensa, e no Algarve. No resto do país, o número de casos mantém uma tendência crescente (RT acima de 1) e a nível nacional a expectativa é que o volte também a ser depois do período das festas.
«A nossa expectativa é que os contágios comecem a aumentar a partir deste fim de semana, com maior deslocação das pessoas para passar o Natal e aumento de contactos», explica Manuel Carmo Gomes. Contágios que vão refletir-se num aumento das pessoas infeciosas dentro de cinco a seis dias, ou seja, no momento do Natal – a estimativa da FCUL é que pelo Natal haja uma média de 3500 pessoas a iniciar sintomas, quando a expectativa chegou a estar abaixo do patamar dos 3 mil casos.
A incógnita é qual será a magnitude do recrudescimento da epidemia, que poderá ter um travão no Ano Novo, onde o Governo recuou na folga inicialmente anunciada: fica proibida a deslocação entre concelhos entre as 00h do último dia do ano e as 5h de dia 4, segunda-feira. No último dia do ano o recolher obrigatório vigora a partir das 23h e nos dias 1, 2 e 3 é proibido circular da parte da tarde em todo o país, com os restaurantes também fechados – na noite de Fim de Ano podem funcionar até às 22h30.
Manuel Carmo Gomes sublinha que qualquer alívio de restrições neste quadro epidémico é «arriscado» em termos de progressão da epidemia, mas diz compreender a opção. «Do ponto de vista epidemiológico, a minha posição seria fechar tudo, mas o Governo quando toma uma decisão não tem só isso em conta. Como cidadão, percebo que não existe uma solução perfeita e que para muitas pessoas e também idosos que estiveram todo o ano sem contactar a família seria terrível não poderem estar juntos no Natal». Durante a semana, vários especialistas manifestaram reservas e multiplicaram-se as recomendações para minimizar o risco no Natal. Mas o certo é que que, juntando o nível de incidência da epidemia – ainda mais de três vezes acima do que foi o pico em abril –, o alívio de medidas que não existiu na Páscoa e nos últimos fins de semana grandes e a quadra mais propícia por si só a contactos fará desta época o momento de maior risco de contágio familiar desde o início da epidemia.
2020 com recorde de mortes
O estado de emergência foi renovado até 7 de janeiro, mas para os especialistas ouvidos regularmente pelo Governo será inevitável (e já era há duas semanas) manter restrições daqui para a frente, sendo necessário monitorizar o impacto das festas para perceber o travão que será necessário aplicar, isto numa altura em que o número de mortes continua muito mais elevado do que na primeira vaga. Este fim de semana serão atingidas as 6 mil mortes por covid-19 e até ao final do ano poderão aproximar-se das 7 mil. Quase metade das mortes registam-se desde o início de novembro (3433), o que mostra bem o impacto da segunda vaga, isto numa altura em que a mortalidade global por todas as causas bateu já recordes históricos no país. Desde o início do ano morreram mais de 118 mil pessoas no país e o ano ainda não terminou. Até aqui, 2018 tinha sido o ano com mais óbitos, com cerca de 113 mil mortes.
Menos 100 mil cirurgias
Os hospitais, apesar de registarem uma ligeira redução dos doentes com covid-19, continuam com mais do dobro dos doentes internados do que aconteceu no pico da primeira vaga. E com limitação nas cirurgias programadas que podem realizar para afetar recursos à covid-19, o que deixará o SNS com a maior quebra de atividade assistencial das últimas décadas. Os dados disponíveis no Portal de Transparência do SNS revelam que até ao final de outubro foram feitas cerca de 399 mil cirurgias programadas no SNS, quando no final de outubro de 2019 tinham sido feitas 503 mil. O ano terminaria com um recorde de 602 mil intervenções cirúrgicas e agora até outubro a redução é de 21%.
Nova variante preocupa Europa
Apesar do bom prenúncio de as campanhas de vacinação estarem agora prestes avançar, também em Portugal, o ano termina com uma nova variante do SARS-CoV-2 a lançar o alerta na Europa. Foi identificada no Reino Unido este mês e associada a um rápido aumento de casos na zona de Londres e Kent. Tem uma mutação na proteína spike, a peça que liga o vírus às receptores das células dos hospedeiros e que é considerada mais sensível entre os investigadores que estudam a evolução do vírus. Ainda não se sabe se é a causa para o aumento de casos ou se interfere com as vacinas.
Durante a semana, em entrevista ao i, o responsável da unidade do Instituto Ricardo Jorge que acompanha a diversidade genética do coronavírus adiantou que estão a concluir a análise de 400 vírus que circularam nesta segunda vaga, o que permitirá perceber quais as variantes mais comuns no país e se esta variante inglesa surge em alguns dos casos desta amostra.
João Paulo Gomes admitiu ao i que, dadas as mutações presentes, justificar-se-ia maior vigilância de quem chega do Reino Unido para detetar precocemente uma introdução. Medidas que só deverão avançar se houver uma decisão a nível europeu. O Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças confirmou ao Nascer do SOL que está a monitorizar a situação de perto com o Reino Unido e outros Estados, não adiantando se há reporte noutros países. «Estamos a trabalhar um Avaliação Rápida de Ameaça, que será publicada no início da próxima semana», indicou a autoridade europeia de sáude pública. Este tipo de avaliação foi feito no início da epidemia e quando foram detetados os primeiros casos de reinfeção.