por Maria Moreira Rato e Pedro Almeida
«O senhor Mamadou Ba é uma figura pública. Como tal, aquilo que diz torna-se notícia», começou por explicar Ana Alice Simões Pereira, de 57 anos, que, no passado dia 3 de dezembro, apresentou queixa contra o antigo assessor do Bloco de Esquerda. Juntamente com cinco testemunhas, a queixosa entendeu que as declarações proferidas pelo ativista, num encontro promovido pelo canal do YouTube Pensar Africanamente, a 21 de novembro, incitam ao ódio e à violência.
A ex-profissional de relações públicas, que reside em Santarém, acredita que «a ‘comunidade negra’ não existe». E isto «porque há negros de classe alta, média e baixa, tal como existem brancos dessas mesmas classes». Na ótica de Alice, «assim como as pessoas do interior e das periferias de Lisboa podem dizer que têm problemas, os negros e os brancos podem afirmar o mesmo». E adianta: «Todos nós, consoante o grupo social em que nos inserimos, temos problemas específicos».
Por este motivo, rejeita com veemência afirmações como «Nós temos é que matar o homem branco como sugeria o Fanon. O homem branco que nos trouxe até aqui tem de ser morto. Para evitarmos […]a morte social do sujeito político negro é preciso matar o homem branco, assassino, colonial e racista» – declarações estas proferidas por Mamadou Ba.
Importa referir que, depois da conclusão da conferência, comentários como «alguém que luta contra o racismo a incitar ao ódio» ou «mais uma vez a tecer comentários abertamente racistas», puderam ser lidos nas redes sociais.
Entretanto, em declarações ao jornal i, Mamadou Ba referiu que o que disse é «evidente» para quem quiser «perceber» o contexto.
E acrescentou: «Se não fosse grave a acusação de incitamento ao ódio, seria bastante cómica», concluindo que a única coisa que quis transmitir foi que «não há forma de combater o racismo sem acabar com a ideia de supremacia branca».
Mas Alice Simões Pereira não se deixa convencer por esta argumentação. E refere que «no Twitter o senhor explicou-se, mas se falamos de um um conceito filosófico, não pode ser uma metáfora». E Alice avança: «Ao dizer que se trata de um conceito, evocando Fanon, assume que partilha da filosofia dele». Ora isto é algo que deixa a queixosa intrigada, porque «Frantz Fanon defendia explicitamente a violência dos negros colonizados, em posição subalterna, contra brancos opressores», realçando que «não podemos referir um escritor assim, no ar».
A queixa
Na queixa apresentada no Ministério Público, Alice Simões Pereira esclarece que as frases através das quais Mamadou Ba terá apelado à morte do homem branco «violam o disposto no Decreto-Lei nº48/95 de 15 de Março, artigo 240º (Discriminação e incitamento ao ódio e violência), número 2, que condenam ‘Quem publicamente por qualquer meio destinado a publicação (…) difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica, (…) e incitar à violência ou ao ódio contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica».
Embora admitindo que «há um problema de conhecimento da língua portuguesa» na comunidade negra, pois «o português falado de África é diferente do nosso», adianta que é «uma cidadã desta República, tal como o senhor Mamadou Ba», tendo «os mesmos direitos e deveres, nem mais nem menos», e por isso avançou com a queixa. Mais: explica que, «se fosse ao contrário, continuaria a ser crime», isto é, caso as afirmações tivessem sido proferidas por um dirigente branco contra a comunidade negra.
«Uma coisa é crime independentemente de ser dita por um branco ou um negro. As pessoas têm de ser responsabilizadas por aquilo que fazem», disse.
A violência
Segundo a queixosa, a referência ao psiquiatra e ensaísta francês Frantz Fanon por parte de Mamadou Ba não relativiza as suas afirmações, antes as agrava. E recorda que Fanon defendeu «o princípio de que a violência de uma raça sobre outra, nomeadamente da raça negra contra a raça branca», tem «uma justificação história e filosófica que a legitima».
No seu livro Les Damnés de la Terre, o francês justifica e defende o uso da violência pelas populações negras colonizadas como única forma eficaz e legítima de libertação dos colonos brancos opressores.
«Por exemplo, Fanon dizia que o homem colonizado liberta-se na (e pela) violência. Ou que, a nível individual, a violência desintoxica». E a queixosa lembra que a ideia preconizada por Fanon de que «a violência livra o colonizado do seu complexo de inferioridade, das suas atitudes contemplativas ou desesperadas», tornando-o «destemido e reabilitando-o aos seus próprios olhos».
Especifica Alice: «Eu não ia a passar na rua e estava uma pessoa a dizer algo e eu apanhei a conversa no ar. Não, o senhor Mamadou Ba interveio como dirigente da SOS_Racismo e disse que era preciso matar o homem branco». E reforça: «E disse isso falando do Fanon que se referia à morte no sentido literal», lembrando que foram as teses políticas do autor «que serviram de suporte aos movimentos de libertação».
A morte social
A seu lado, Orlando Patterson explorou o conceito de ‘morte social’, sendo que, na queixa, Alice Simões Pereira escreve que «transpor este tipo de argumentação da realidade das colónias africanas de há sessenta anos para um país democrático, onde todas as instituições do Estado de Direito funcionam, e onde todos os cidadãos têm meios de ver reconhecidos os seus direitos constitucionais, demonstra um comportamento xenófobo intolerável e sancionável no âmbito do quadro jurídico da República Portuguesa, além de má fé – na medida em que cita um autor descontextualizando completamente a tese defendida por este».
A queixosa assinala ainda que «o senhor Mamadou Ba tem uma posição extrema que pode conduzir a uma conflitualidade que, neste momento, não existe». E, a propósito, evoca as ondas de violência verificadas em países como os EUA. «Eu não gostaria de ver, no meu país, bandos armados nas ruas a destruírem tudo só porque alguém, que tem voz pública, se lembrou de fazer o apelo à morte do homem branco», remata.
Assumindo que é militante do Partido Socialista desde 1993, Alice sublinha que neste caso não se trata de um movimento «de direita ou esquerda», mas sim de uma reação à injustiça. Entre as testemunhas que apresenta, não há ninguém à direita do PSD. Mas – assinala a queixosa, «quando aparecem conversas de racismo as posições tendem a extremar-se».
A importância da noção de civilização
Na última alínea da queixa apresentada, é possível ler «A Constituição portuguesa, no seu artigo 13º, número 1, garante que ‘Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei’. Situação diametralmente oposta à apresentada por Frantz Fanon para legitimar a violência de negros colonizados contra brancos colonizadores».
Assinalando repudiar quaisquer atitudes racistas, lembra que recentemente auxiliou um estudante guineense que tinha problemas com o português, tendo-lhe aconselhado a leitura de A Odisseia, de Homero, e a escrita de uma composição acerca do livro. «Nunca me esqueci da primeira frase do texto: ‘É um dos livros mais importantes da nossa civilização’». E adiantou que «aquele miúdo que era pobre, que à partida estava atrás dos outros na linha de oportunidades da vida, assumia Homero como seu», o que «é muito bonito».
Alice considera que «nós, cidadãos, temos o dever de fazer alguma coisa para integrar quem chega». E segue essa premissa, tendo dado aulas a imigrantes de Leste, paquistaneses, chineses e de outras nacionalidades em regime pro bono.
«Eu contribuo para resolver os problemas, não gosto é que os inventem. Esta é uma questão pura de cidadania», afirmou.
Vozes Ao Alto
Tirado do primeiro verso do refrão de Jornada, uma das canções do compositor Fernando Lopes-Graça, com letra de José Gomes Ferreira, Vozes ao Alto constitui o site que ilustra a luta que Alice Simões Pereira tem travado com as outras cinco testemunhas que apresentaram queixa contra Mamadou Ba. «Sophia de Mello Breyner escreveu, na Cantata da Paz, que ‘vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar’; e se eu vi, li e ouvi, entendi que não podia ignorar a situação». A queixosa considera que cumpriu o seu «dever de cidadã» – e, agora «o Ministério Público que faça o seu trabalho de investigação e chegue às respetivas conclusões».
“É uma cretinice ideológica”
Mamadou Ba sublinhou que nenhuma ‘estratégia de mordaça’ o vai calar e que nunca deixará de lutar contra o racismo.
Mamadou Ba, dirigente da organização SOS Racismo, diz estar disposto a pagar qualquer preço para defender o direito à palavra, depois da queixa de que foi alvo, em Santarém, devido às suas declarações em que é acusado de apelar à «morte do homem branco» durante um debate digital.
«Toda esta polémica é uma cretinice ideológica e uma grosseira manipulação política. Aliás, não deixa de ser curioso que sejam os setores que mais vociferam contra o policiamento da palavra ou contra o chavão do politicamente correto que se mobilizaram contra a suposta transposição de todas as linhas vermelhas que eu teria cometido», sublinhou o ex-assessor do Bloco de Esquerda, adiantando ainda que «podem os racistas ativos e passivos montar uma tenda no Ministério Público, porque nunca deixarei de lutar contra o racismo com todos os meios ao meu dispor», atirou. Além disso, deixou também claro que nenhuma «estratégia de mordaça, chantagem, perseguição ou linchamento público» o calará.