A covid-19 foi o presente envenenado que entrou na casa de Joana mesmo na véspera de Natal. Ela nem sabe do que teve mais medo. Na balança do seu raciocínio, dois pesos quase com a mesma dimensão nos tempos que correm paralisaram-lhe o cérebro – como se este, em choque com a notícia, tivesse deixado de ser irrigado. «Acho que tive mais medo de perder o emprego e levar os meus colegas para a mesma situação, do que pelo facto de eu e a minha filha termos recebido no mesmo dia o teste que confirmava estarmos infetadas».
Com esta antevisão sinuosa a enevoar-lhe a mente, Joana, empregada num restaurante na Marina de Vilamoura, no Algarve, nem questionou a ignorância festiva da enfermeira do Centro de Saúde de Loulé: «Disse-me que, apesar de eu e a minha filha estarmos positivas, devíamos ficar em isolamento em casa, mas sem contactarmos uma com a outra. Isto porque uma de nós podia desenvolver sintomas e pegar à outra».
Enquanto a filha cumpria as instruções e se trancava no quarto onde iria passar a ceia natalícia, Joana, 47 anos, aspeto sólido, de atleta, preparou-se psicologicamente para informar os patrões. Conhece o contexto nacional. Com a evolução dramática da pandemia, a situação no ramo da restauração batera no fundo. Há desempregados por todo o lado. A crise galopante faz empalidecer as anteriores e pressente-se uma nova era de escravidão no trabalho.
Joana ainda hesitou no telefonema. Está numa situação vulnerável: um empregado infetado é uma ameaça. «Pensei para mim: ‘Já está, tinha de ser eu a primeira pessoa da equipa de trabalho a ser infetada. O restaurante vai ser fechado. Seja o que Deus quiser!’». A empresa onde Joana trabalha há 11 anos, apesar das baixas neste ramo, tinha conseguido manter a casa aberta sem colocar os funcionários em layoff. Passados uns minutos, atenderam-na. Foi a patroa quem lançou uma ‘indireta’: «Sempre vos disse que todo o cuidado era pouco!». Joana, ainda com a indignação a boiar no olhar, traduz: «Ela estava a responsabilizar-me. E eu até podia ter sido infetada no trabalho, ninguém sabe. Não perguntou como é que eu estava, ou a minha filha, ou se precisávamos de ajuda…».
Na luta pela sobrevivência, as pessoas ficam cada vez mais embrutecidas. Com a ‘aberta’ dada à restauração no Natal por António Costa, pela cabeça da empresária apenas a saúde mercantil do negócio parecia uma emergência. E como se de uma circunstância óbvia se tratasse, fez um pedido invulgar à empregada: «Queria que, quando me ligassem do Centro de Saúde para fazer o rastreio das pessoas com quem estive em contacto, omitisse os colegas com quem tinha almoçado. Mas recusei-me. Não ficaria bem com a minha consciência!».
Quando a meia-noite chegou, Joana, que planeara passar o Natal com uma irmã em Albufeira, estava na sala, sozinha, com a mesa vazia: «Não tinha programado jantar em casa e por isso não tinha um único doce». Seguira à risca as orientações da profissional de saúde que a mandara isolar-se da família e deixara o jantar à porta do quarto da filha: «Não há nada mais triste do que deixar a comida de um filho num tabuleiro no chão. Nem um cão merece isto».
No dia seguinte, apesar de não ter outros sintomas para além da febre, Joana já não sabia como fazer para aguentar os passos lentos do tempo, as ideias negras que a rondavam como um inseto que não conseguia esmagar. Foi uma médica amiga que lhe ligou para desejar as Boas-Festas quem lhe disse que as recomendações da enfermeira do Centro de Saúde estavam em contradição com todas as orientações das autoridades de saúde: «Ou seja, passei o Natal separada da minha filha, que sofre de ataques de pânico, porque, passado um ano desta pandemia, ainda ninguém se entende. Cada um diz a sua». Alguém disse um dia que a sabedoria só chega quando já não é necessária. Foi o caso.