Janeiro. Meninos do Rio…

1906: o Rio de Janeiro era tomado pela febre do futebol. Organizava-se o primeiro campeonato, as rivalidades nasciam como cogumelos.

O futebol não era, decididamente, o que é hoje. 1906 foi um ano revolucionário para o nobre jogo bretão, como os jornalistas brasileiros da época se referiam ao association. A cidade onde o futebol era vivido com mais vibração iria ter um campeonato próprio. Os adeptos iam poder dar largas ao seu fanatismo com jogos a doer, em vez dos cada vez mais insípidos amigáveis e haveria um campeão do_Rio de Janeiro, o que serviria para que os seus fãs deixassem correr pelas queixadas aquela baba bovina de que tanto falava Nelson Rodrigues.

Quando Gaspar de Lemos entrou na Baía da Guanabara ao comando da sua frota deparou-se com uma paisagem tão bela que engoliu várias vezes em seco antes de lhe dar o nome de Rio de Janeiro. Mais tarde, os português perceberam que não se encontravam na foz de nenhum rio, mas como haviam ali chegado a 1 de janeiro de 1502, Rio de Janeiro ficou até hoje.

É difícil ficar-se indiferente à Baía da Guanabara. Foi Caetano Veloso que o cantou: «O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baía de Guanabara/O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela/A Baía de Guanabara/O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara…». Há gostos para tudo. Numa das biografias de Lévi-Strauss, O Poeta no Laboratório, de Patrick Wilcken, o autor descreveu a desilusão do cientista: «Quando o navio entrou no porto do Rio, Lévi-Strauss sentiu uma deceção que se tornou famosa. Apesar do esforço mental, o cenário feria seu senso de proporções clássicas. O Pão de Açúcar e o Corcovado pareciam grandes demais em relação ao conjunto, como ‘tocos… numa boca desdentada’, como se a natureza tivesse deixado para trás uma obra inacabada, assimétrica». Convenhamos que Claude tinha uns gostos um bocado estranhos. Viveu três anos no_Rio de Janeiro, entre 1935 e 1938, e não há registos que se tenha entusiasmado minimamente pelo futebol nos intervalos das suas investigações sobre aquilo que veio a chamar as invariantes. Nessa sua comparação de sociedades, o sentido lúdico do brasileiro com uma bola nos pés passou-lhe ao lado. Pois… Não admira que o antropólogo Claude Lévi Strauss tenha detestado a Baía da Guanabara.

 

O campeão Flu

Voltemos para trás trinta anos. De 3 de maio a 28 de outubro, jogou-se a I Edição do Campeonato Carioca. A organização do torneio coube à Liga Metropolitana de_Football e seis clubes alinharam à partida: Fluminense, Payssandu, Rio Cricket, Botafogo, Bangu e Football Athletic. Havia também, à moda inglesa, uma II_Divisão composta por America, Colégio Latino-Americano e Riachuelo. Ligeiramente pindérica, na verdade, mas com o primeiro classificado a ter o direito de passar para o escalão principal, trocando com o último dos primeiros.

O Fluminense tinha um conjunto de categoria, contando com gente como Horácio_Costa Santos, Emílio Etchegaray, Duque Estrada, Félix Frias e, sobretudo, Edwin Cox. Irmão do principal fundador do clube, Oscar Alfredo Cox, era um driblador exímio e tinha sempre na cartola um truque para tirar de repente, a meio de um jogo, levando os espetadores ao histerismo. O pai, George Emmanuel Cox, era um cidadão inglês pomposo como qualquer cavalheiro de Marylebone, e não perdia um jogo do filho. O jovem Cox alinhou pelo Flu entre setembro de 1903 e setembro de 1910: em 62 jogos disputados marcou 61 golos. Ninguém poderia acusá-lo de não ser rigoroso ao milímetro.

Com tanto jogador de classe, o Fluminense ganhou o I Campeonato Carioca com uma perna às costas, se não mesmo com as duas. Em dez jogos, apenas uma derrota, frente ao Paysandu, por 1-3. Um encontro que teve muito de vingativo e foi duro como se de um lado e de outro jogassem com chuteiras de ferro. Isto porque na jornada inicial da prova, nas Laranjeiras, o Flu aplicara ao seu adversário (segundo na classificação final) nada menos do que 7-1. Aliás, o ataque dos tricolores era bárbaro: 8-0 e 6-1 ao_Botafogo; 7-0 e 11-0 ao_Football Athletic – um total de 52 golos marcados e apenas 6 sofridos.

A festa foi rija nas Laranjeiras. Um dos jogadores da equipa, Clyto Portella, convenceu o seu pai, Arnaldo Portella, dono de uma casa de ‘artigos masculinos’, a Casa Colombo, a mandar vir de Inglaterra um troféu em prata que levou o nome de Copa Colombo (quem diria?) e cuja atribuição, nos anos que se seguiram, serviu para estimular a competitividade.

Bem ao estilo carioca, o campeonato de 1907 transformou-se num charivari. Desta vez foram apenas quatro os participantes. Vivendo num amadorismo puro e duro, muitos clubes não conseguiam reunir o conjunto necessário de jogadores para entrar em compita. Fluminense e Botafogo chegaram ambos na frente, com uma derrota para cada qual, deixando longe o Paysandu e o_Internacional.

Na última jornada, o Flu declarou-se campeão com base numa regra da Liga Metropolitana que atribuía o título ao clube que tivesse melhor média entre golos marcados e sofridos. O fudevu estralejou. O Botafogo exigiu uma partida de desempate, algo que os regulamentos não contemplavam. A coisa chegou a tal ponto que a Liga, considerando-se incapaz de resolver o assunto, se desintegrou. Se julgam que a matéria se ficou por aqui, enganam-se redondamente. O título de campeão carioca de 1907 permaneceu num limbo, cada clube reclamando para si a vitória. Só em 1996, mais de noventa anos depois, é que a entretanto criada Federação_de Futebol do Estado do Rio de Janeiro, tomou uma decisão definitiva. E tão salomónica que reconheceu dois campeões. Só faltava cortar a taça a meio.