Por Joana Faustino e Maria Moreira Rato
Máscaras. Entre um ateliê doméstico e a venda em grande escala
Sandra Simões Cordeiro tem 50 anos e metade da sua vida foi passada a dar aulas de artes decorativas e pintura, em ateliês particulares, workshops pelo país inteiro e em universidades séniores instituídas por diversas juntas de freguesia. «Não há canto nenhum que não conheça», explicou, adiantando que, antes de março, trabalhava na Junta de Freguesia de Santa Clara, em Lisboa.
No entanto, no dia 12 de março, como agravamento da situação pandémica, no país, foi para casa. «As minhas alunas têm de 60 para cima, a mais velha 86 anos, ia lá duas vezes por semana, às segundas e quintas», lembrou, revelando que as estudantes da terceira idade usufruíam de aulas de Inglês, Informática e artes. «Tive de arranjar maneira de me distrair. As minhas alunas ligam-me todos os dias e a toda a hora porque não me dão autorização para regressar. E elas são vinte», declarou com a saudade notória no timbre de voz, assumindo que por ser «tagarela», ficar em casa tem constituído um verdadeiro desafio.
Porém, tenta superá-lo. «Adoro pintar, mas as pessoas nunca dão o devido valor às minhas peças. Não faço duas iguais. Comecei por fazer máscaras para oferecer. Fiz muitas para dar a profissionais de saúde. Posteriormente, decidi criar uma gama de máscaras porque tenho muito material em casa», começou por descortinar, assumindo que se mantém atenta às novas tendências e consegue levar o negócio recém-criado a bom porto por contactar variadas influencers que aceitam promover o seu trabalho. Contudo, o volume de pedidos tem escalado e, sozinha, nem sempre pode corresponder às expectativas dos clientes. «Por vezes, chamo a minha mãe e uma amiga para me ajudarem. Ela é chefe da gabinete na SATA e, quando tem folgas, auxilia-me», recordou, não deixando de realçar que se levanta às 9h e deita-se somente às 3h.
«Veio a moda das correntes e fui uma das primeiras a explorá-la. Era uma loucura. Cada vez que dou algo a uma influencer, há um boom nas vendas. Houve uma altura, há cerca de um mês, em que quis largar isto e pintar, fazer aquilo de que gosto de fazer», admitiu, considerando que as máscaras sociais que cria se destacam pela qualidade das camadas de tecido. «A maior parte das máscaras tem a abertura para que se coloque o filtro. As minhas já têm o filtro removível, para se desinfetar com o desinfetante normal das mãos. Podem ser lavadas com água quente e sabão. Tem de se ir atrás dos tecidos. Farto-me de gastar dinheiro», afirmou, sendo que vende cada máscara a 10 euros «independentemente do tecido» e, caso tenham corrente, a 15. Apesar do negócio prosperar, a artista tem saudades do passado. «Não faço mais nada a não ser máscaras. Têm sido milhares. Faz-me falta conviver e falar».
As transações do Estado
Mas nem só o cidadão-comum tem lucrado com objetos outrora pouco utilizados. De acordo com o portal BASE, em que os contratos públicos estão disponíveis para consulta, a Glsmed Trade, S.A – no mercado nacional desde 2015 e a importar dispositivos médicos desde 2016 –, detida pelo grupo Luz Saúde, realizou contratos com o Estado no valor de 37,6 milhões de euros no primeiro trimestre de 2020. «Todos os contratos que fizemos com o Estado são do domínio público.
No primeiro trimestre deste ano concentrámos os nossos esforços em ajudar a resolver as dificuldades sentidas em Portugal de acesso a dispositivos médicos e testes – tal como estava também a acontecer no resto da Europa», começou por esclarecer Pedro Lima, diretor de logística e suporte operacional, continuando que «nesse sentido, é normal que tenha havido uma concentração maior das vendas ao Estado durante esse período».
Segundo dados do portal BASE, dois dos maiores contratos que a empresa celebrou com a Direção-Geral da Saúde dizem respeito à venda de máscaras FFP ou similar, com a descrição «Ajuste Direto Para Aquisição De Bens Para Suprir Necessidades No Âmbito Do Contexto Epidemiológico Da Doença Respiratória Aguda Por Novo Coronavírus» e os valores de 8 milhões e 640 mil euros ( a 6 de abril) e 4 milhões e 60 mil euros (a 23 de março).
«O Estado representou menos de 40% das nossas vendas em 2020. A maior parte das foi feita a empresas privadas (de vários setores). Um quarto das nossas vendas corresponde a exportações para vários mercados europeus», assinalou Pedro Lima.
A Fosun, que tem uma plataforma de produção em Xangai, é o acionista principal da GLSMed e, deste modo, tal contribuiu para que o grupo fosse um dos principais players de venda de material, inclusivamente, máscaras. Esta relação alertou a Glsmed «atempadamente para a gravidade da situação, o que permitiu antecipar a reação à crise que se avizinhava» e permitiu que tivesse «acesso a recursos e equipas altamente qualificadas naquele país, preparadas para responder às necessidades emergentes».
«A pandemia empurrou-nos para uma aceleração dos desígnios estratégicos de expansão que já tínhamos traçado a seu tempo. Nesse sentido, após o primeiro trimestre, continuámos a expandir a nossa base de clientes (dentro e fora de Portugal) e a realizar os nossos objetivos estratégicos, conseguindo, em simultâneo, acrescentar valor e contribuir para a recuperação da economia nacional no pós-pandemia», acrescentou Pedro Lima.
Acrílico. ‘Açambarcaram tudo’
Aos 36 anos, Paulo Silva dedicou-se à Acrilworld, empresa de comercialização e transformação de acrílicos. Volvidos 12 anos, o «negócio relativamente conhecido mas de dimensão pequena» teve um crescimento exponencial na procura. «Quando surgiu a pandemia e, de repente, toda a gente começou a querer objetos como proteções de balcão ou viseiras, tivemos o maior pico de contactos de toda a nossa história», inclusivamente de empresas internacionais que tentavam perceber se seria possível comprar acrílico para produzirem os seus próprios produtos.
Como em quase todas as áreas, a matéria-prima escasseava. «Havia a necessidade, mas dois ou três colegas abordaram os distribuidores de chapa acrílica e açambarcaram tudo aquilo que havia disponível no mercado», assinalou Paulo Silva, não deixando de destacar que essa resposta manteve-se por quase três meses. Assim, a ideia generalizada «de que toda a gente na indústria dos acrílicos se fartou de vender é um mito», pois «trabalhou-se um pouco mais, mas rapidamente aconteceu o oposto. Tivemos semanas sem trabalho porque não tínhamos uma única chapa para trabalhar».
Por volta de agosto «começou a haver regularização» e Paulo Silva apostou na criação de proteções em acrílico para lojas, escritórios e instituições públicas ou privadas – modelos standard e personalizados –, viseiras convencionais, bonés com viseira com ou sem impressão e outros materiais associados ao contexto pandémico. «Mas não entrámos na loucura nas viseiras, não é a nossa praia. Aquilo que temos feito mais são claramente as proteções, as divisórias de mesas para refeitórios e proteções comuns para balcões».
«Os clientes que não entraram no frenesim, que não trabalharam, estão agora a programar a reabertura de espaços, então estamos a servi-los. Calmamente, respondemos a estas pessoas», mencionou o empresário, que considera que «o acrílico é um negócio de nicho» mas, «com a procura toda que houve, os carpinteiros, os marceneiros, os vidreiros e muitos mais decidiram fazer proteções». Esta constituiu uma das razões «para que o material desaparecesse», na medida em que «como é típico dos portugueses, quiseram aproveitar para ganhar dinheiro».
«Há empresas que venderam proteções dez, 15, 20 vezes mais caras do que hoje. Alegavam que a matéria-prima era escassa e isso, economicamente, fez com que quem tivesse urgência pagasse valores completamente desproporcionais. Feliz de quem faz margens de 1000, 1500% de lucro», adiantou, demarcando-se desta posição. «Este ano, tínhamos de ter multiplicado por cinco ou por seis o nosso volume de negócios, mas fechámos o ano com o volume igual ao do ano passado», finalizou.
Ventiladores. Cancelados 245 contratos
O ventilador Atena, que consiste num sistema de respiração artificial invasivo, de fácil montagem e de baixo custo, surgiu como uma hipótese para colmatar a falta de ventiladores no país, mas ainda aguarda certificação do Infarmed, pois, a 29 de junho, a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde concedeu uma autorização excecional condicionada para utilização deste dispositivo médico no Serviço Nacional de Saúde. O objetivo passava por auxiliar o tratamento de doentes adultos infetados pelo SARSCoV-2 em situações de emergência, em caso de indisponibilidade ou inexistência de ventiladores certificados.
O projeto do Centro de Engenharia e Desenvolvimento (CEiiA) recebeu doações de mecenas através de uma campanha de crowdfunding, assim como apoios financeiros a título de empréstimo por parte da Agência Nacional de Inovação, num total de 2,6 milhões de euros. Em julho, foi noticiado que, dos 500 aparelhos fabricados até à altura, da primeira versão do Atena, 100 já haviam seguido para o Brasil, sendo que o preço de cada unidade rondava os 13 mil euros. Em outubro, o negócio com o Brasil de venda de cerca de 800 ventiladores estáva em stand by. «Neste momento, infelizmente, não é oportuno para o CEiiA dar esta entrevista», foi a resposta dada ao nosso jornal depois de ter tentado obter informações acerca do processo de certificação.
No início da pandemia, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tinha 1142 ventiladores e, desde então, foram adquiridos 1411, «dos quais 1211 comprados centralmente». Atualmente, «do total das aquisições, já foram entregues aos hospitais 819 ventiladores, 140 aguardam validação e foram cancelados os contratos relativos a 245 ventiladores, por incumprimento do prazo de entrega», segundo dados do Ministério da Saúde. Deste modo, o SNS já conta com um total de 1961 ventiladores.
O crescimento do número de ventiladores disponíveis foi alcançado por meio da recuperação de material, doações e compras concretizadas através dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. A 5 de novembro do ano passado, na discussão do Orçamento do Estado para 2021, questionada pelo deputado da Iniciativa Liberal João Coutrim Figueiredo, a ministra da Saúde especificou que dos equipamentos comprados pelo Estado, 253 ventiladores estavam em testes nos Serviços de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH), sendo que o problema prendia-se com a falta de uma peça «que não veio de origem e que que está a escassear no mercado internacional».
Design. A resiliência da Culto da Imagem
Design, impressão em pequeno e em grande formatos, impressão 3D, têxtil, laser, esferovite, carpintaria, serralharia ou até logística e montagens são algumas das áreas em que a Culto da Imagem atua. Contudo, no início da pandemia, Gonçalo Barreto, fundador da empresa formada pela «quadrilha dos bons, mentes engenhosas, com o tique incurável de pôr mãos à obra» compreendeu que vocábulos como pandemia, quarentena ou distanciamento social manter-se-iam no dicionário da população portuguesa por algum tempo. Assim, avançou com a criação da Mais Proteção, loja online cujo catálogo contempla produtos como autocolantes de chão, parede e acrílico, baias, dispensadores de gel, stand ups ou viseiras.
Apesar de, em 2020, a criação de novas empresas ter caído em 24%, sendo que se situou nas 37.558 entidades, o «que corresponde a um valor semelhante ao que se registou em 2016», segundo dados da consultora Informa D&B, Gonçalo Barreto não esmoreceu. «No período de confinamento, fomos fornecedores do Serviço Nacional de Saúde e de várias empresas. Temos máquinas de laser e fizemos viseiras», contou o empreendedor, explicitando que trabalhava na produção de publicidade, prestando os serviços anteriormente referidos, «cuidando das artes finais de todos os trabalhos e estando em contacto com o cliente desde a apresentação da ideia até à concretização do projeto, dedicando-se também ao transporte, à montagem, à desmontagem e ao armazenamento dos materiais», mas tomou a decisão de lançar a Mais Proteção.
«Alterámos a nossa empresa, na altura do confinamento, para uma fábrica de materiais de proteção. Comprámos mais máquinas e entrámos na produção de material covid», disse, mencionando que «atravessamos períodos de incerteza, com real impacto nas nossas relações familiares, na forma como trabalhamos e socializamos» e manteve sempre em mente que «o impacto na economia é transversal, abrangendo grande parte dos setores, mas, como bons portugueses, e com a resiliência que nos caracteriza, tentámos aprender a ajustar ou reinventar as nossas atividades laborais, em busca da tão desejada estabilidade financeira e do relançamento económico».
StayAway Covid. Desencontro entre médicos e códigos
A aplicação StayAway Covid viu a sua presença nas playstores dos smartphones dos portugueses no dia 1 de setembro. Desde então, até dia 7 de janeiro foram confirmados 398 290 casos de infeção por covid-19. No entanto, de acordo com os dados fornecidos pelo Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) ao Nascer do SOL, para o mesmo período foram gerados pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) apenas 10 811 códigos.
O que é que isto significa? Que apenas 2,71% das pessoas que foram diagnosticadas com covid-19 neste período receberam um código para introduzir na app. Dos códigos gerados, apenas 24% foram inseridos pelos utilizadores. A grosso modo, podemos dizer que das 389 290 infeções confirmadas entre o primeiro dia de setembro e dia 7 de janeiro, apenas 2604 foram possíveis de detetar pela app StayAway Covid.
A aplicação foi desenvolvida com o objetivo de alertar a população para uma eventual exposição a alguém diagnosticado com covid-19. Se alguém der positivo, deve receber um código dado pelo médico que o acompanha e inserir esse código na app. Se o infetado for para a rua e estiver perto de alguém que também tenha a app, a pessoa que esteve na proximidade do doente irá receber um alerta. Contudo, até agora, não parece que esteja a funcionar de maneira realmente eficaz. Por um lado, são poucos aqueles que pedem o código para inserir na aplicação, por outro também existem médicos que não o sabem gerar.
O caso de Rodrigo Afonso é um exemplo dessa mesma situação. Um dia depois de ter feito o teste PCR no Hospital da Luz, o jovem de 22 recebeu um resultado positivo. Posto isto, ligou para a linha da Saúde24, que posteriormente o encaminhou para a unidade de saúde local. Rodrigo pediu a um dos dois médicos que o acompanhou para lhe fornecer o código para inserir na app, ao que este respondeu «que não era competência dele e que o código devia ter vindo junto com o teste positivo».
Para alguns médicos e especialistas, o funcionamento da app não é «muito lógico, visto que está a ser pedido às pessoas que não saiam do seu quarto e por isso não contactem com o ninguém». As declarações são do especialista em Medicina Geral e Familiar Rui Nogueira. Para que a aplicação tivesse o resultado pretendido seria necessário que «o código fosse inserido automaticamente através do sistema na aplicação daqueles que estão infetados e têm o StayAway instalado».
Quando questionado se já gerou muitos códigos, Rui Nogueira confessa que nunca gerou nenhum: «Por mais que se insista com as pessoas para que descarreguem a app não se pode fazer muito mais, e além disso, o objetivo é mesmo fazer com que elas fiquem em casa».
Vanda Tadeu foi diagnosticada com Covid-19 no dia 28 de outubro, um dia depois do marido. Contactada pelo Nascer do SOL, explicou que nem o delegado nem a médica que acompanhou o seu caso «falaram sobre código nenhum». O marido junta-se à conversa e afirma que foi o próprio que teve de pedir o código mas que «a médica nem sabia como é que isso se fazia, disse que ia ver como era e depois me ligava».