Portugal pode precisar de ajuda internacional

Os internamentos vão continuar a subir nas próximas semanas, com hospitais já no limite. ‘Todos os cenários têm de ser equacionados’, defende Filipe Froes. Hospitais começam a ter rutura de alguns medicamentos.

O número de doentes com covid-19 a precisar de internamento vai continuar a aumentar nas próximas semanas e, mesmo com confinamento, a travagem não é imediata e pode tornar-se mais lenta com a nova variante a circular. Já em março, com a epidemia menos disseminada, o número de doentes internados nos hospitais subiu até meados de abril e o pico só foi atingido no dia 16, quase um mês depois de ter sido decretado o estado de emergência. Na altura foram, no máximo, 1302 doentes internados com covid-19 nos hospitais. Esta quarta-feira eram 5630, com a capacidade de resposta muito mais expandida, agora com a atividade cirúrgica não urgente nos hospitais de novo suspensa. Já no limite, depois de expandirem enfermarias e adiarem atividade programada e com alguns hospitais a ativarem planos de catástrofe, o cenário de recorrer a ajuda internacional começa a ser encarado como mais uma forma de enfrentar o esperado ‘tsunami’ de doentes. No início da semana, o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, disse não haver planos nesse sentido: «Garantidamente que não há no mundo sistemas de saúde ilimitados, mas o compromisso que temos com os portugueses é que vamos usá-lo  [o sistema de saúde nacional] até ao limite».

Ao longo da semana multiplicaram-se os relatos de dificuldades nos hospitais, incluindo para assegurar a pressão de oxigénio, e mesmo o cenário de uma requisição civil poder ser solução para o momento atual de forte pressão no SNS, um dos temas que dominaram a campanha das presidenciais, começou a ser refreado pelo Ministério da Saúde. Questionado sobre o cenário de requisição em Lisboa e Vale do Tejo, o presidente da Administração Regional de Saúde assumiu que «se não há recursos, não se pode requisitar nada», sendo taxativo: «Se as camas estão cheias, não há qualquer hipótese de podermos utilizá-las».

Em entrevista à RTP, a ministra da Saúde, sem descartar por completo a requisição e admitindo mais convenções, também falou dos limites. «Não é a requisição civil que resolve o problema», indicou. Até esta semana, o SNS tinha 52 convenções, para resposta a doentes com covid-19, com o setor privado, social e Forças Armadas, num total de 850 camas, explicou Marta Temido. Na região de Lisboa há 165 camas acordadas com o setor privado, «que já estão a ser utilizadas», mais 120 camas no Centro Médico Militar de Belém, e vão ser disponibilizadas 140 camas no Hospital Militar, adiantou. O hospital de campanha ativado na Casa do Atleta, na Cruz Quebrada, já começou a receber os doentes e a estrutura montada no Estádio Universitário deverá começar a funcionar nos próximos dias. Encontrar pessoal para trabalhar nestas estruturas tem sido a dificuldade, numa altura em que os turnos nos hospitais também já estão a ser esticados. E faltam braços não só nos hospitais, mas também nos lares.

 

7 mil doentes internados

O ritmo a que o número de doentes tem estado a crescer indicia que poderão ser necessárias milhares de camas adicionais dedicadas à covid-19 nos próximos tempos. Nos últimos sete dias houve apenas um ligeiro abrandamento no aumento de doentes internados com covid-19, mesmo com o elevado número de óbitos nos hospitais. Os doentes com covid-19 internados em enfermaria aumentaram 28,9% no espaço de uma semana quando, na semana anterior, a subida tinha sido de 31%. Os doentes internados em UCI aumentaram 14,8% quando, na semana anterior, a subida tinha sido de 18%. Mantendo-se esta tendência, na próxima semana, o número de doentes internados com covid-19 pode passar o patamar dos 7 mil, mais 1600 do que à data de hoje, chegando-se também aos 800 doentes em cuidados intensivos. A nova variante do SARS-CoV-2 identificada no Reino Unido (VOC 202012/01) é um dos fatores de incerteza. Com maior transmissibilidade, a disseminação pode aumentar e a travagem dos contágios, a começar a verificar-se, pode tornar-se mais lenta. Foi a justificação do Governo para apertar medidas. Mas como funcionará o confinamento é uma incógnita.

No Reino Unido começa a haver a perceção de que o confinamento (o terceiro, depois de um segundo confinamento antes do Natal, sem fecho de escolas) não está a funcionar da mesma forma que antes de estar a circular esta variante. O Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC na sigla inglesa) recomendou ontem aos países que aumentassem a vigilância desta e das variantes brasileiras e sul-africanas, também com maior transmissibilidade, e se preparassem para maior pressão de casos. No Reino Unido, a VOC 202012/01 já é dominante e as últimas estimativas apontam uma prevalência de 70%, segundo os dados apresentados ontem pelo ECDC. Em Portugal, a análise feita pelo Instituto Ricardo Jorge a partir de amostras testadas nos laboratórios Unilabs, na semana de 11 a 17 de janeiro, estimou uma prevalência de 13%, que poderá chegar a 60% nas próximas três semanas, podendo ter havido já 20 mil casos de infeção com esta nova variante. «Dado ser mais transmissível, ela aumentará naturalmente ao longo do tempo, mesmo que o número de casos diminua, como se espera que aconteça com o confinamento», alertou o instituto.

 

«Países mais ricos também recorreram a ajuda»

Ao Nascer do SOL, Filipe Froes, pneumologista e coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, considera que neste momento, diante do agravamento da situação epidemiológica e da situação de «rutura» nos hospitais, todos os cenários devem ser equacionados, incluindo o recurso ao estrangeiro, considerando que tem havido uma resposta «tardia» à progressão da epidemia. E deixa um apelo: «O confinamento só funciona se todos perceberem que temos de aderir. Não pode haver pessoas sem máscaras na rua, a passear». Para o médico, a realização de eleições este domingo deveria ser ainda reponderada. «Face ao risco de agravamento da situação no decurso do ato eleitoral, devemos equacionar se este não deve ser adiado».

O médico explica que nos hospitais começa a haver falta de consumíveis. «Começamos a ter rutura de alguns medicamentos devido ao aumento das necessidades, como é o caso de sedativos como o propofol, utilizados em situações em que é preciso induzir o coma, o que leva a um agravamento da resposta».

Froes considera que é a altura de ser ponderado um eventual pedido de ajuda internacional e de não protelar essa hipótese caso seja necessária e viável. «Todos os cenários têm de estar em cima da mesa. Se outros países mais ricos do que nós o ponderaram e fizeram, como Bélgica e Holanda, temos também legitimidade. Fazer isto nesta altura é mais difícil do que há dez meses ou há cinco meses e implica admitir um conjunto de diferentes abordagens e erros ao longo do tempo, mas, a fazê-lo, não vale a pena esperar que haja mais rutura e repercussões sanitárias para o ponderar», defende.

E admite que poderia ser equacionada a transferência de doentes graves para zonas mais próximas de Espanha, nomeadamente para Badajoz, e «eventualmente pedir ajuda a médicos de outros países para apoiar as equipas em Portugal». Ontem, na TSF, o presidente do Colégio de Emergência Médica da Ordem dos Médicos, Vítor Almeida, defendeu a necessidade de ser criada uma rede nacional para transferência de doentes críticos.