por António Manuel de Paula Saraiva
Arquiteto paisagista
Como resultado da pandemia que assola Portugal – e o mundo – alguns candidatos às eleições presidenciais têm vindo a advogar que se ‘modernize’ a forma de votar. Os argumentos parecem convincentes: assim se poderia diminuir o elevado número de abstenções devido ao medo de contágios na ida às urnas, e evitar a deslocação ao local de voto não só aos emigrantes mas a quem tenha dificuldade ou impossibilidade de deslocação – nomeadamente aos internados em lares e àqueles que estão em confinamento.
Entretanto, os recentes acontecimentos nos EUA, que culminaram na invasão do órgão máximo do poder civil, o Capitólio, e se traduziram numa divisão entre americanos que se arrastará provavelmente por muitos anos, devem-nos fazer refletir. Como se sabe, muitos americanos pensam que o resultado eleitoral foi falseado em desfavor do candidato mais atacado pelos media e menos popular na inteligentzia; e as dúvidas baseiam-se na validação dos numerosos votos por correspondência, na fiabilidade das máquinas de contagem de votos, incluindo as do voto electrónico. Não cabe aqui discutir a validade dessas alegações, nem seria razoável que o fizéssemos, pois para tal teríamos de ser uma espécie de ‘deus’, presente em todos os locais de voto e verificando como os votos não presenciais eram validados (ou não) e contados, e funcionavam as máquinas de contagem de votos. Nem isso importa: a verdade (especialmente nas ‘humanidades’ – história, filosofia, religião, economia, etc.) é muitas vezes inatingível, e a percepção que cada um tem das coisas passa sempre por um ‘filtro’: os nossos genes, a nossa história, as nossas memórias.
‘Em política, o que parece é’, disse um dia Salazar. Mas se não gostarmos da personagem, lembremos o conto de Anderson Tudo o que o velho faz é bem feito. Num casal de velhotes, o marido vai tomando, uma após outra, decisões económicas ruinosas; mas a mulher, com uma confiança inabalável nele, respondia invariavelmente: «Tudo o que o velho faz é bem feito». A história acaba bem: quando o marido já nada tinha, ganha uma aposta que repõe em dobro tudo o que perdera.
Em Portugal, felizmente, nunca foram discutidos os resultados ‘numéricos’ das eleições. Os resultados, sim: há um vencedor, porque venceu; outro, porque ficou em segundo lugar; um terceiro, porque subiu a votação; um quarto, porque não perdeu tantos votos como se dizia; etc. Mas os resultados em si – nunca. E isto porque, creio, os votos não são contados em máquinas nem ‘provêm’ de máquinas que não sabemos como funcionam, nem podemos verificar. Caso contrário, choveriam as dúvidas…
É que, em eleições, não podemos conhecer a sorte do nosso voto. Para isso, ele teria que deixar de ser secreto.
Ora, a confiança nos resultados eleitorais é a ‘pedra de toque’ da democracia – dela derivando o respeito pelas autoridades legitimamente constituídas.
A confiança é, aliás, um pilar fundamental das sociedades, mesmo das pouco civilizadas. Confiança dos homens uns nos outros. Confiança em que o autocarro que tomamos para a Pontinha não vai para Cascais. Confiança em que a manteiga que compramos no supermercado é manteiga e não margarina.
E esta indispensabilidade da confiança é tanto mais necessária nos dias que correm em que a confiança nas instituições está abalada – veja-se como em Portugal quase todos os bancos faliram – e as notícias e comentários na net são, em boa parte, elaboradas por ‘empresas’ (troll factories) que a tal se dedicam.
Pelo exposto, qualquer sistema de votação que possa – ainda que só como hipótese – ser manipulado deve ser rejeitado. E, ainda que a ‘insistência’ no voto presencial possa dificultar, ou mesmo impedir, que certos cidadãos votem (1), tal é claramente preferível a que os resultados eleitorais possam ser contestados.
Felizmente que o sistema de votação português privilegia o voto presencial, o único que assegura plenamente o secretismo do voto, e que os eleitores não estejam sujeitos a coações ou tentados por corrupções. Não deixemos que condicionalismos temporários, vontade de ser ‘modernos’ ou emoções pouco reflectidas, possam abalar este pilar da democracia. E o argumento de que diminuiríamos a percentagem de abstenção se permitíssemos o voto electrónico não colhe: Democracia e Liberdade são mais excepção que regra neste mundo – e por isso exigem, para quem delas quiser gozar, esforço e empenhamento. E, por isso, o poder-se votar com um simples toque no telemóvel enquanto se come um gelado na praia, ou no intervalo do cinema, pode diminuir as abstenções mas não aumentará, pelo contrário, a confiança no sistema.
(1) Estes problemas podem ser minorados com o voto antecipado para o pessoal que estiver de serviço, ou de qualquer forma impedido no dia das eleições (como, aliás, já é praticado); disponibilidade de transportes gratuitos (inclusive ambulâncias) para cidadãos de reduzida mobilidade; e voto por correspondência, mas limitado à emigração.