Ao segundo confinamento obrigatório, que há uma semana veio encerrar novamente salas de espetáculo, cinemas e todo o tipo de equipamentos culturais, o Ministério da Cultura, tão criticado pela ineficácia dos apoios anunciados para o apoio ao setor durante a primeira vaga da pandemia de covid-19, procurou emendar a mão ao anunciar um pacote de apoios ao setor no valor de 42 milhões de euros. Um apoio desta vez anunciado como «universal, não concursal e a fundo perdido», nas palavras da ministra Graça Fonseca, que se fez acompanhar do Ministro de Estado e da Economia na apresentação do programa Garantir Cultura. Uma semana depois de anunciadas as medidas, e ao cabo de um ano catastrófico para um setor historicamente marcado pele precariedade, não é ainda claro para quando poderão os trabalhadores do setor contar com os anunciados apoios. Nem se chegarão a todos.
Para isso mesmo alertou esta semana o Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos – CENA-STE num comunicado em que, saudando «a resposta dada a várias das suas reivindicações, algumas de longa data», aguarda agora pela sua implementação, o teste que permitirá avaliar «o real impacto destas medidas», que continua a defender que necessitam de ser reforçadas «nos valores, no alcance e no tempo». A começar pelo anunciado apoio de 438,81 euros mensais a cada trabalhador independente do setor durante o tempo de duração do confinamento. Um valor que, explica ao Nascer do Sol Rui Galveias, membro da direção do sindicato, se prova manifestamente insuficiente, «abaixo do limiar da pobreza», ainda que possa ser acumulado com outros apoios. «Era muito importante que o valor de referência base fosse o ordenado mínimo nacional», defende. «Estas pessoas não deixaram de ter uma renda para pagar. Não querendo ser incorreto para nenhum trabalhador da cultura, uma família que tenha dois ou três filhos a estudar, por exemplo, está numa situação muito complexa».
Mas não é o valor, fixado com base no Indexante dos Apoios Sociais, a única preocupação deste que é o mais representativo dos sindicatos do setor. Apesar de anunciado como transversal e a fundo perdido, esse apoio poderá, uma vez mais, deixar de fora alguns trabalhadores independentes do setor cultural e artístico. «Há muitos trabalhadores das áreas dos espetáculos e dos eventos que são da área da cultura e não estão abrangidos pela medida específica de 1 IAS para o setor por não terem os CAE ou os CIRS que os habilitam para os apoios», alertava o sindicato no comunicado do início da semana. Rui Galveias explica que tal se deve ao facto de, num setor cronicamente precarizado, há casos de trabalhadores que, «por várias razões, até por causa das características irregulares de trabalharem para vários patrões e de realizarem nalguns casos outras atividades ao longo do ano, têm como atividade principal ‘outros prestadores de serviços’». Uma situação que «seria normal e aparentemente correta, mas que neste momento não é». E insiste: «Voltamos sempre ao ponto da precariedade e da falta de contratos de trabalho, mas agora estamos a falar de milhares de trabalhadores que garantem eventos corporate, que fazem festivais de verão… ou seja, todos aqueles que não são abrangidos por uma atividade que se substitua ao serviço público e que garanta uma parte do serviço público em Portugal no âmbito da DGArtes, vão ter uns apoios muito reduzidos e muito cingidos a esta ideia de confinamento».
42 milhões não são uma ‘bazuca’
Na semana passada, enquanto se aguardava pelo anúncio das medidas com que o Governo compensaria o setor por este novo impedimento da prossecução de atividade, Álvaro Covões, promotor da Everything is New, entre muitos dos grandes concertos e eventos que se realizam em Portugal responsável também pelo NOS Alive, alertava para a necessidade de uma verdadeira «bazuca» financeira para acudir a um setor que «não funciona em ‘take-away’, teletrabalho ou ‘delivery’». À agência Lusa, dava conta de alguns números ilustrativos de uma crise na qual o setor mergulhou e que nem a relativa abertura dos meses de verão e do outono permitiu mitigar: «Estamos a reunir números, porque as vendas de faturação de dezembro fecharam há dois dias, mas tudo indica que a nossa quebra em 2020 foi de 80%. Apesar de se pensar que o setor cultural podia trabalhar, a verdade é que, desde junho, os equipamentos culturais estão limitados a lotações de 50%», notou. «Estamos a viver uma coisa sem precedentes no nosso setor».
Os números não deixam margem para dúvidas: dos museus aos cinemas, das salas de concerto às salas de teatro, não houve setor que escapasse à grave crise trazida pela pandemia em 2020 e que se estenderá pelo menos por 2021. Nos cinemas, segundo os dados divulgados já neste mês de janeiro pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual, a quebra foi de 75,55%, tanto na audiência como nas receitas de bilheteira. Dados que, segundo o ICA, refletem «um ano marcado por profundos constrangimentos» na exibição cinematográfica e que, em números absolutos se traduzem em apenas 3,77 milhões de bilhetes vendidos em todo o ano de 2020 — menos 11,7 milhões do que os 15,5 milhões de 2019. Em termos de receitas, apenas 20,4 milhões de euros, um quarto dos 83,1 milhões totalizados no ano anterior ao da chegada da pandemia ao país. 2020 foi mesmo o pior ano para a exibição cinematográfica em Portugal desde que há registo.
Nos museus, a quebra de visitantes foi praticamente da mesma ordem. Com menos 3,3 milhões de visitantes do que no ano anterior, os espaços tutelados pela Direção-Geral do Património Cultural registaram ao longo do ano de 2020 uma quebra de 72,3% nas visitas, em linha com as perdas registadas um pouco por todo o mundo, mas num ano que se tinha iniciado com uma ligeira subida na procura. Nos meses de janeiro e fevereiro de 2020, segundo números da Direção-Geral do Património Cultural, haviam sido registados aumentos de 4,9% e de 6% face aos mesmos meses do ano anterior.
O anúncio dos 42 milhões de euros na semana passada feito por Graça Fonseca e Pedro Siza Vieira são um sinal positivo, reconhece Rui Galveias. «Os 42 milhões de euros que a ministra apresentou são interessantes, mas se olharmos para a realidade e para a dimensão do que é o nosso Orçamento do Estado para a Cultura percebemos que continua a ser uma percentagem daquilo que seria necessário para que o Ministério da Cultura conseguisse funcionar como um ministério, em plena capacidade».
O anunciado reforço do financiamento da Direção-Geral das Artes, de forma a assegurar, mediante a atribuição de apoios que não sejam determinados por concursos — 2021 «não é ano para concursos», afirmou a ministra —, que todas as estruturas elegíveis serão apoiadas, é saudado como uma medida relevante. «Vamos esperar para ver como é que são implementados, mas é relevante especialmente a questão do alargamento dos apoios às estruturas elegíveis pelos apoios da DGArtes, uma coisa que sempre reivindicámos. Se as estruturas são elegíveis, devem ser apoiadas. O alargamento dos apoios e a garantia de apoios a todas as estruturas elegíveis nos próximos dois anos, pelo menos, é importante, muito relevante e abrange muitos trabalhadores da cultura».
A ‘normalidade’ que nunca voltou
Além da indicação que chegou no fim de semana de que os ensaios de espetáculos agendados para os meses de fevereiro e março poderão manter-se mesmo durante o confinamento — uma melhoria face à paragem absoluta a que foram obrigadas as equipas nos meses de confinamento da primeira vaga da pandemia, conhece-se ainda muito pouco sobre a forma como as medidas chegarão ao setor. «Em março houve apoios que não chegaram por falhas, há também a questão das dívidas à Segurança Social, da sua não suspensão, e a questão da continuação do pagamento da Segurança Social paralelamente a apoios de miséria — valores que são quase os mesmos. Temos de perceber se isso é ou não ultrapassado», alerta o sindicalistas, sublinhando que o programa Garantir Cultura nos moldes mais robustos em que foi agora anunciado «é fruto da pressão durante um ano e de uma contestação que é uma contestação muito justa, porque estamos a falar de trabalhadores que ficaram numa situação muito difícil e de empresas que não têm como resistir a isto».
A propósito da resistência, e na linha dos problemas para os problemas para os quais Álvaro Covões alertava, Rui Galveias faz questão de sublinhar que aquilo a que se chamou retoma do setor não foi na realidade uma retoma, e antes uma falsa partida. E por isso as medidas agora anunciadas chegam com «dez meses de atraso». E explica: «Criou-se uma ideia de que havia uma retoma e é por isso que lhe chamamos uma falsa partida. Os espetáculos que existiram nestes meses continuaram a ser diminutos, serviram para criar uma ideia de normalidade perante a opinião pública que depois não se reflete na vida destes trabalhadores. A verdade é que grande parte da atividade continuou parada ou reduzida a mínimos». Conclui Rui Galveias: «Para nós a discussão não é sobre se há retoma ou não há retoma, para nós a questão é não se criar a ideia de que com a retoma deixou de haver problemas para resolver, porque os problemas permaneceram».