Mandela. Dez mil dias de reclusão

Republicada entre nós, a autobiografia de Mandela relata a extraordinária vida do grande líder sul-africano e os 27 anos e meio que passou preso. Mais do que uma história inspiradora, deveria constituir um vade mecum para o nosso tempo.

Conta-se que um dia, pouco depois de ter sido eleito Presidente da África do Sul, Nelson Mandela (1918-2013) estava num restaurante com um grupo de pessoas próximas quando viu um rosto conhecido noutra mesa. Mandela pediu a um dos seus guarda-costas para convidar o homem a sentar-se na sua mesa.
O homem assim fez. Mas estava visivelmente desconfortável e, quando a comida chegou e começaram a comer, os talheres tremiam-lhe nas mãos. Finalmente, terminou o seu prato e despediu-se sem uma palavra.
Quem era afinal aquela figura misteriosa e porque estava tão perturbada?, questionaram-no. Mandela respondeu-lhes que era o seu antigo carcereiro. Um homem que, quando ele lhe suplicava por água depois das torturas, lhe urinava em cima da cabeça.

A história, que se destina a enaltecer a capacidade de perdoar do grande líder sul-africano, é certamente apócrifa. Em nenhum lugar aparece referida nas suas memórias, recentemente publicadas em Portugal – Nelson Mandela – Um Longo Caminho para a Liberdade (ed. Crítica). Mas parece conter um fundo de verdade. Sobre um dos guardas que o vigiavam em Robben Island, Mandela escreveu: «Van Rensburg era um tipo vingativo nas grandes e nas pequenas coisas. Quando o nosso almoço chegava à pedreira e nos sentávamos para comer – agora já tínhamos uma mesa comprida, de madeira – Van Rensburg aproveitava a ocasião para urinar ao lado da nossa comida». E acrescentava com uma nota de ironia característica: «Creio que lhe devíamos ficar gratos por não o fazer directamente lá para dentro, mas mesmo assim apresentámos um protesto contra esse hábito».

Foi precisamente em Robben Island – a ilha-prisão ao largo da Cidade do Cabo onde passou 18 dos 27 anos que esteve encarcerado, rodeada de águas infestadas de tubarões e hoje transformada, como Alcatraz, em museu e atração turística – que Mandela começou a escrever estas suas memórias. Fazê-lo nas condições em que se encontrava não era uma tarefa fácil, uma vez que a escrita constituía uma atividade proibida pelo regulamento.

A ideia surgiu em 1975, no seu 57.º aniversário, com o propósito de publicar o livro dali a três anos. E exigiu uma pequena «linha de montagem». 

Para começar, Mandela pediu escusa do trabalho na pedreira – que, mais do que o físico, lhe tinha afetado os olhos, ao ponto de proibir, mais tarde, que os fotógrafos usassem flash nas conferências de imprensa. Passava assim as tardes a dormir, de modo a poder escrever durante a noite. Os carcereiros estranharam que passasse as noites sentado. «O que anda o Mandela a tramar?».
Os escritos eram depois passados em letra «quase microscópica, reduzindo dez páginas a um pequeno pedaço de papel».

«Mac escondia engenhosamente a transcrição do manuscrito dentro das capas dos blocos de apontamentos que usava para os estudos. […] O que estava combinado era que Mac nos informaria em segredo quando o manuscrito estivesse a salvo, fora do país. Só então destruiríamos o original. Nesse ínterim tínhamos de encontrar maneira de esconder um texto de quinhentas páginas. Fizemos a única coisa possível: enterrámo-lo na horta. […]
Para não termos de cavar um buraco grande decidimos separar o manuscrito em três partes, duas pequenas e outra maior, embrulhadas em plástico e acondicionadas em latas de cacau vazias».
Mas a construção de um novo muro levou a escavações no local e o manuscrito acabou mesmo por ser encontrado pelas autoridades. Ainda assim, acabaria por formar «a espinha dorsal destas memórias».

Vidas paralelas

O tumultuoso século XX ficou marcado por duas guerras devastadoras e por personalidades malignas que levaram a barbárie a extremos impensáveis. Mas também produziu figuras que, se não redimem os crimes cometidos, pelo menos nos permitem não perder completamente a esperança na humanidade. Uma delas foi Mahatma Gandhi, o pacifista indiano que combateu o injusto sistema de castas e conseguiu liderar o seu povo à autodeterminação. Outra foi Mandela.

Ambos formados em Direito, tinham como modelo na juventude o cavalheiro inglês. «Todos aspirávamos a ser ‘ingleses negros’, como por vezes nos chamavam por troça», escreveu Mandela.

Curiosamente, Gandhi começou a sua carreira como advogado na África do Sul. Fora aliás a humilhante expulsão de uma carruagem de 1.ª classe, reservada a brancos, quando viajava no país que lhe mostrara a injustiça do sistema. Na altura representava clientes da comunidade indiana, que era escandalosamente discriminada. Esta mesma comunidade viria a ser uma peça fundamental do ANC, o movimento que pretendia pôr fim à repressão dos sul-africanos na sua própria terra, a que Mandela aderiu em 1947, um ano antes de Gandhi ser assassinado.

Ambos desafiaram a autoridade, passaram longos períodos presos e, claro, deixaram-nos poderosos livros de memórias, publicados com cerca de 70 anos de diferença.

Em Um Longo Caminho para a Liberdade, Mandela descreve o seu percurso desde a aldeia do interior, onde estava destinado a tornar-se chefe tribal, até à Presidência. Os primeiros passos como advogado foram decisivos para a formação da sua consciência social e política. «‘Mandela e Tambo’, assim rezava a placa de latão afixada à porta , em Chancellor House, um pequeno edifício fronteiro às estátuas de mármore da Justiça que ornamentavam o Magistrate’s Court, no dentro de Joanesburgo. O nosso prédio era propriedade de indianos e um dos poucos na cidade onde os africanos podiam alugar um espaço. Mandela & Tambo foi assediada pela clientela desde a primeira hora. Não éramos os únicos advogados negros da África do Sul, mas éramos a única firma de advogados africanos. Para os africanos, nós éramos o primeiro e o último recurso. Para entrar no escritório, todas as manhãs tínhamos de abrir caminho entre uma pequena multidão que se aglomerava nas escadas, nos corredores e na diminuta sala de espera».

Aí, percebeu a «necessidade desesperada de apoio jurídico» que os negros sentiam. Podiam ser acusados por passar uma porta ‘Só para brancos’, por passear numa praia ‘Só para brancos’ ou por estarem desempregados. «Todos os dias nos confrontávamos com os milhares de humilhações a que os negros estavam sujeitos no seu quotidiano».

Mas rapidamente seria ele a passar para o banco dos réus pela sua atividade política ‘subversiva’. «Na madrugada do dia 5 de Dezembro de 1956, ao raiar da alva, fui acordado por uma ruidosa pancada na porta. Nenhum amigo ou parente bate à porta daquela maneira autoritária e percebi logo que era a polícia. […]
– Mandela, temos um mandado para te prender. Vem comigo.
Olhei para o mandado e foi como se as palavras me saltassem aos olhos: HOOGVEERRAD – ALTA TRAIÇÃO».

Pele de leopardo, túnica de linho

Detido na presença dos filhos, acabaria ilibado pelo tribunal. Mas passaria os 17 meses seguintes na clandestinidade, de que nos deixou um relato vibrante. «Quando se vive na clandestinidade o essencial é ser-se invisível. Da mesma maneira que há uma maneira de chamar as atenções ao entrar numa sala, também há maneiras de andar e de agir que nos fazem passar despercebidos. Como dirigentes políticos, é normal que nos procuremos destacar; como foragidos, é o contrário».

Mandela voltaria a chamar as atenções depois de ser detido em agosto de 1962 e novamente levado a tribunal. Apresentou-se perante o juiz envergando uma pele de leopardo que «electrizou a assistência». «Nessa segunda feira entrei no tribunal envergando o traje tradicional xossa, uma pele de leopardo, em vez do habitual fato e gravata. […]
Escolhi o traje tradicional para enfatizar o simbolismo de um africano perante um tribunal de brancos. Carregava literalmente aos ombros a história, a cultura e a herança do meu povo. Nesse dia senti-me a personificação do nacionalismo africano, herdeiro de um passado turbulento mas nobre e de um futuro incerto. O traje era também um sinal de desprezo pelas subtilezas da justiça dos brancos. Sabia que as autoridades se sentiriam intimidadas pelas vestes tribais, como acontece com tantos brancos quando confrontados com a verdadeira cultura africana».

Mais uma vez, o episódio ecoava uma atitude do líder indiano. Quando foi convidado a tomar chá com Jorge V, Gandhi apareceu vestido com uma simples túnica de linho e um repórter perguntou-lhe se achava o traje adequado à ocasião. «Não se preocupe com as minhas roupas. O Rei usa roupas suficientes pelos dois».

Dez mil dias de prisão

A 12 de junho de 1964, Mandela recebeu a sentença: prisão perpétua.
«Nunca considerei seriamente a ideia de que um dia não viria a sair da prisão. Nunca me convenci de que uma pena perpétua fosse realmente para toda a vida e que havia de morrer atrás das grades», escreveria.
O seu optimismo era justificado. Como em tantas outras coisas, Mandela tinha razão. Quase 20 anos depois, em 1985, após negociações com o poder, e com o regime sul-africano muito pressionado pela comunidade internacional, receberia de Pik Botha uma oferta de liberdade – mas recusou dado não satisfazer todas as suas exigências. Sairia do cativeiro cinco anos depois. Frederik de Klerk era Presidente há um ano – haveriam de ganhar o Nobel da Paz juntos em 1993.

À saída da prisão domiciliária para onde tinha sido entretanto transferido havia uma multidão à sua espera. «Quando por fim transpus os portões […] senti que apesar dos meus setenta e um anos era como se estivesse a começar de novo. Os meus dez mil dias de prisão tinham chegado ao fim».
Só lamentava uma coisa: não ter tido oportunidade de se despedir dos guardas e carcereiros.
Se, em jovem, «partilhava as ideias do ultranacionalismo africano» e «odiava os brancos, não o racismo», 27 anos de cativeiro tinham-lhe dado muito tempo para refletir. «Na prisão, o rancor que alimentava contra os brancos foi decrescendo na mesma medida que aumentava o ódio que votava ao sistema. Queria que a África do Sul percebesse que amava os meus inimigos e só detestava o sistema que nos tinha lançado uns contra os outros».

Embora no seu primeiro discurso em liberdade afirmasse que «não era um messias», os factos parecem desmenti-lo. Não apenas derrubou o apartheid e se tornou o primeiro Presidente eleito por sufrágio universal na África do Sul como promoveu o perdão e evitou um banho de sangue na transição do poder. «É chegado o momento de sarar velhas feridas e de construir uma nova África do Sul», declarou depois de ser eleito Presidente, em 1994. O facto de o seu apelo nos parecer tão próximo e familiar não é fruto do acaso. É uma prova da imensa influência de Mandela, mas também um lembrete de que vivemos tempos conturbados, em que o seu exemplo é necessário como nunca.