No Independent havia um jornalista chamado David McKittrick com um jeito supimpa para escrever obituários. Dava vontade de dizer: estou ansioso para ler o meu. No dia 26 de abril de 2009 coube-lhe falar sobre Salamo Arouch, a quem chamavam O Bailarino. Tinha cumprido um belo naco de vida quando a morte o ceifou com 86 anos, em Tel Aviv, Israel. Aliás, há que dizer que dificilmente alguém com a vida que Arouch levou teria chegado a essa idade. «Salamo Arouch was a particularly tough Jewish boxer who needed every ounce of his toughness to stay alive during two years in Auschwitz concentration camp, where hundreds of thousands were put to death», lançava David no início da sua prosa. Sim, na verdade Arouch sobrevivera à custa dos punhos. Ele que até era um meia-leca, não indo além de um metro e sessenta e oito de altura, assim mesmo por extenso, porque era um homem por extenso e foi sempre um resistente por extenso.
Nascido em Salónica, na Grécia, no dia 1 de janeiro de 1923, filho de um estivador que tinha por conta, além dele, mais dois rapazes e quatro raparigas, aos 14 anos já andava pelo porto do mar Egeu carregando e descarregando caixotes dos navios que iam e vinham e o faziam sonhar com uma vida longe da comunidade judaica da qual fazia parte. O tempo passa, e como passa… Quando a II Grande Guerra rebentou, já O Bailarino tirava proveito da sua força bruta nos ringues de boxe, abatendo adversários como quem derruba manequins da montra do Grandella, tendo sido campeão grego de pesos-médios em 1938 e vencedor da mesma categoria no torneio dos países balcânicos. Podia ufanar-se de, em 24 combates, ter vencido todos, com o impressionante pormenor de somar 24 KO. Por essa altura, sentiu que o dever pátrio o chamava e alistou-se no exército grego. As coisas não lhe correram de feição nos campos de batalha. Não tardou a ser feito prisioneiro e os nazis caçaram-lhe a família por inteiro e despacharam-na por via férrea para essa estrumeira da Humanidade que levou o nome de Auschwitz-Birkenau.
No dia 15 de maio de 1943, os Arouch foram recebidos como untermenchen e Salamo ganhou uma tatuagem no braço direito com o n.º 136954. Num abrir e fechar de olhos, arrasaram-lhe a família. Pais e irmãos caíram do céu pardo de Oswiecim em forma de cinzas. Salamo aguentou-se. Os oficiais nazis gostavam de ter boxeurs por conta. Programavam lutas duas ou três vezes por semana e ganhavam boas maquias nas apostas a favor dos seus preferidos em caso de vitória. Esses combates duravam, frequentemente, até à morte de um dos contendores, mas não havia nenhum dos prisioneiros de Auschwitz que não preferisse morrer no ringue do que numa câmara de gás. O Bailarino não fugiu aos escrutínios das bestas do apocalipse alemão. Envolvido na teia sinistra da barbárie, decidiu conquistar o direito à vida através dos punhos. Muitos anos mais tarde, numa entrevista, foi simples na maneira como explanou a sua filosofia: «Ou ganhava ou morria». Ganhou.
Salónica é uma cidade simpática, capital da Macedónia de Alexandre, orgulhosa do seu passado como dominadora do mundo que se estendia da Grécia até à Índia. Durante décadas a fio atraiu muitas famílias judias a ponto de, em 1939, os judeus se contabilizarem em cerca de 47 mil. Em menos de um ano as alimárias de Hitler reduziram esse número à insignificância de 2 mil.
O pijama às riscas e o número tatuado no braço não envergonhavam Salamo. Pelo contrário: encontrou neles uma motivação para a resistência. Os ataques frequentes de disenteria em vez de o abaterem tornavam-no mais duro, mais impiedoso. O seu estilo intrépido fez dele um dos favoritos de vários oficiais da Schutzstaffel que exibiam canalhamente nas fardas o emblema da caveira e ossos. Passou a ser chamado mais vezes ao ringue. Raras eram as semanas em que não o sujeitavam a três combates. O Bailarino de Auschwitz ganhou a tenacidade do aço.
Foi o próprio Salamo que fez as contas: durante os dois anos que passou em Auschwitz realizou mais de duzentos combates. Muitos daqueles homens que venceu e, com isso, atirou para os crematórios, eram seus companheiros de caserna, mas não lhes era dado o privilégio da escolha. Quando um dos boxeurs resistia durante mais tempos aos seus punhos demolidores, um qualquer Obersturmbannführer menos paciente mandava interromper a luta e decidia arbitrariamente o vencedor. Arouch valia demasiado em apostas para ficar do lado dos derrotados, que era o mesmo que dizer do lado dos mortos. «Não houve um único combate em que tivesse participado que terminasse sem que aqueles monstros bêbados e excitados tivessem visto sangue. Era como uma sede incontrolável», recordou Salamo antes de tomar o mesmo caminho dos que vencera. No dia 17 de janeiro de 1945, Salamo foi transferido para Bergen-Belsen. A guerra estava à beira do fim mas os nazis continuaram a explorar a sua força colossal em trabalho escravo. Os seus punhos partiram pedras até ao dia da libertação.