As eleições de domingo, realizadas em plena crise pandémica da covid-19, ficam marcadas por uma abstenção a rondar os 61%, um novo recorde em presidenciais. E chegou a temer-se cenário ainda pior. Muitos defenderam o adiamento das eleições, outros, como Jorge Miranda, propuseram uma revisão cirúrgica e relâmpago da Constituição para que os eleitores pudessem votar em dois dias (e não apenas num) de forma a acautelar os riscos da pandemia, muitos outros reclamaram pelo voto eletrónico ou por correspondência… Mas nada se fez.
No seu discurso de vitória, no domingo, o Presidente reeleito, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou a urgência e necessidade de reformar o sistema eleitoral para ir de encontro às reclamações do eleitorado e combater a abstenção.
A reivindicação do Presidente foi imediatamente secundada pelos dois maiores partidos – PS e PSD –, mas os politólogos ouvidos pelo Nascer do SOL, mesmo assim, mostram-se céticos.
Para José Ribeiro e Castro, antigo líder do CDS-PP, definiu este como «um problema com duas partes». Em primeiro lugar, o centrista coloca a abstenção como um «sintoma», e não «a doença», pelo que, defende, a revisão da lei eleitoral deverá passar por alterações profundas do sistema político, mais do que por «soluções técnicas», que poderão facilitar o voto, mas não resolvem os problemas intrínsecos. «Há uma pressa em atender a mecanismos que facilitem a votação, numa resposta técnica, que dizem que os eleitores não votam por ser uma ‘maçada’, e isso poderá não responder ao problema de fundo do sistema eleitoral, e favorecer sistemas de voto errados ou com problemas», defendeu Ribeiro e Castro.
Sobre a mesa, afirma por seu lado o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, estão um sem fim de possibilidades de mudanças técnicas: o voto eletrónico, o voto por correspondência, o voto obrigatório e o alargamento do voto em mobilidade foram só algumas das referências feitas pelo constitucionalista. Entre elas, Bacelar Gouveia defende a obrigatoriedade do voto, alegando que seria uma forma de tornar «os cidadãos mais comprometidos com a vida política e diminuir a preguiça, já que muitos eleitores não deixam de votar por protesto, mas sim por preguiça». O voto obrigatório, defende ainda, seria também uma forma de «responsabilizar os partidos, que têm de corresponder com uma melhor capacidade de representar os problemas do país».
Ribeiro e Castro discorda, acreditando que «o voto é livre, e isso significa que a pessoa se quiser também não vota».
O voto obrigatório, defende, até poderia ter riscos, porque «a pessoa que não quer votar, quando for, não vota na sua convicção, e vai votar noutro partido qualquer porque está zangado». «É tapar o sol com uma peneira», conclui.
Sobre os ‘perigos’ do voto por correspondência e do voto eletrónico, Bacelar Gouveia desvaloriza, defendendo que «a vantagem que o voto presencial tem em segurança, perde em participação, e a vantagem que o voto eletrónico e por correspondência perdem em segurança, ganham em participação». O constitucionalista não nega a existência da possibilidade de, por exemplo «o voto eletrónico ser manipulado digitalmente», mas acredita que aconteceria de forma residual e que, no caso do voto presencial, não há uma isenção de manipulação completa, já que «todos os eleitores, mesmo no voto presencial, são manipulados diariamente pela opinião pública», pelo que não descarta estas novas modalidades, colocando ainda o caso dos emigrantes como exemplo: «Até hoje, nunca vi ninguém questionar a validade dos votos por correspondência pelos emigrantes, que já existem há anos, pelo que não vejo o porquê de agora serem questionados».
Ênfase nas comunidades de emigrantes
Este é aliás um tema que o politólogo João Pereira Coutinho define como um dos pontos fortes de uma possível reformulação da lei eleitoral. «Nos nossos atos eleitorais, os emigrantes têm sido sempre os parentes pobres do dia das eleições. Como se explica que tenhamos um número significativo de emigrantes eleitores e tão pouco impacto nos dados eleitorais? Há quem pense que são cidadãos portugueses de segunda, mas é evidente que um cidadão, independentemente do local que escolheu para viver e trabalhar, deve ter uma palavra fundamental do próprio país».
O politólogo aponta o dedo aos diferentes partidos políticos, que, numa situação pandémica, não sentiram «urgência em resolver o problema de exclusão em que se encontram os emigrantes portugueses na hora de escolher o Presidente da República». «Se as alterações forem conducentes a que nas próximas eleições presidenciais seja possível o voto por correspondência, ou por exemplo a possibilidade do envio online do voto para impressão, ou outras formas dos emigrantes votarem, essas alterações serão sempre bem-vindas», conclui.
Da mesma opinião é Francisco Assis, antigo eurodeputado socialista, que garantiu que os partidos na Assembleia da República devem «ter uma grande sensibilidade» e garantir «condições para que os cidadãos portugueses emigrantes possam participar ativamente nas eleições presidenciais». Assis relembra que «há 30 anos é que havia partidos que desvalorizavam o voto dos emigrantes», e que «havia a ideia de que existiam comunidades mais conservadoras em certos locais, que poderiam alterar o panorama político». Essas ideias, no entanto, «já não existem», garante, defendendo que a principal mudança a debater numa reformulação da lei eleitoral deverá mesmo ser a «facilitação» do processo eleitoral para os cidadãos emigrados.
«O aumento de emigrantes recenseados, após a aplicação do processo de recenseamento ativo, deve vir acompanhado de uma alteração na legislação para que haja maior participação nas eleições», conclui ainda.
Já Ribeiro e Castro é taxativo sobre a ‘pressa’ com que se querem aplicar estas novas medidas de voto, nas quais, defende, que «o voto por correspondência é errado, tem muitos problemas, e ninguém pode assegurar que é livre e secreto porque ninguém sabe em que circunstâncias foi feito, se foi um voto de grupo ou se foi coagido».
Além das mudanças na forma de voto, o constitucionalista Bacelar Gouveia refere a criação de um círculo nacional, em que «as pessoas passam a votar em deputados que representam todo o país e num outro boletim nos deputados do seu distrito», a aplicação do voto personalizado, em que o cidadão pode escolher, no caso das eleições legislativas, os candidatos que querem ou não escolher dentro das listas dos partidos e uma «reforma das eleições autárquicas», de forma a serem mais ‘representativas’. Defende o constitucionalista que esta seria uma forma de «aproximar os candidatos dos eleitores e tornar a vida política mais fácil», apontando o dedo à grande «falta de representatividade» que se faz sentir atualmente, uma das justificações que encontra para a alta abstenção que se faz sentir no país.
Esta é, aliás, uma reforma defendida por José Ribeiro e Castro. Para o antigo dirigente centrista, este é um sistema que «permite que o eleitor, que hoje tem a sensação de que ‘não toca na bola’, escolha também o seu deputado, não escolhendo só o partido».
O politólogo João Pereira Coutinho, por sua vez, acredita que, «sem pensar numa reforma profunda, tudo o resto são pequenos remendos para estancar um problema que pode vir a ser irreversível, que é um afastamento dos portugueses da vida política».
A mudança poderá passar, defende também, por um «sistema misto», de forma a que «as nossas eleições não sejam pura e simplesmente esta espécie de apresentação de listas de representantes cozinhadas pelos partidos, que os portugueses se limitam a sufragar com cada vez menos entusiasmo».
Debate deverá acontecer, mas poderá não ter efeito
João Pereira Coutinho é assertivo sobre os diferentes interesses políticos em volta do debate da alteração da lei eleitoral: «Quando há um ato eleitoral e há alta abstenção, quase todos os partidos políticos prometem fazer coisas importantes para combater a abstenção, mas eu nunca levo a sério os partidos políticos, sobretudo o ‘arco da governação’, ou seja, o PSD e o PS», confessa o professor-associado, que acusa estes dois partidos de serem «os principais beneficiários da abstenção elevada, porque quanto maior for, há menos pressão para que os partidos se preocupem em estabelecer uma ligação consequente com o eleitorado». Pereira Coutinho é ainda mais taxativo, afirmando que «o melhor que pode acontecer para o PS ou PSD é que os portugueses que de certa forma estão muito descontentes com o sistema ou não se identificam nas alternativas que existem, fiquem em casa e não vão votar, porque se forem, provavelmente vão votar em soluções alternativas, ou antissistema». A manutenção do debate sobre o tema deverá manter-se assim, defende, nos partidos com menor representação parlamentar.
Bacelar Gouveia, por sua vez, faz uma previsão: «Arrisca-se a correr logo numa discussão histérica, bastando que alguém diga algo com impacto mediático para a ideia se tornar impopular pelas dificuldades na sua implementação e seja abandonada».
«O assunto deve ser discutido, mas tenho as maiores dúvidas de que possa ser aprovado», conclui.