Ninguém tinha grandes dúvidas que os países mais pobres ficariam a perder na corrida à vacina da covid-19. Mas agora até a União Europeia, a terceira maior potência económica mundial, está a ficar no fim da fila. Londres e Bruxelas, que ainda tentavam sarar as feridas recentes do Brexit, chocaram esta semana, quando a farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca admitiu que só conseguiria entregar um quarto dos 100 milhões de doses que prometera à UE até março – enquanto cumpriria a promessa de entregar 100 milhões de doses ao Reino Unido.
A disputa que se seguiu, com a UE a ameaçar restringir a exportação de vacina produzida no seu território, e o Reino Unido a acusar o bloco europeu de chantagem, ecoam os primeiros tempos da pandemia. Nessa altura, foi cada país por si, lutando para obter ventiladores, máscaras ou equipamento de proteção. Com Bruxelas desesperada, a ver a promessa de inocular 70% dos europeus até ao verão tornar-se cada vez mais improvável, a tensão tem todos os traços do «nacionalismo das vacinas», cujos riscos têm sido salientados por especialistas nos últimos meses.
«Foi visto um padrão semelhante durante a pandemia de H1N1, em 2009. Antes disso, as vacinas para a varíola e poliomielite só ficaram disponíveis em países em desenvolvimento após os países desenvolvidos assegurarem stock suficiente para as suas necessidades domésticas», lembrou o Forum Económico Mundial. «Mas apesar de haver uma certa inevitabilidade no desejo das nações de protegerem-se a si mesmas primeiro, tais decisões têm consequências para todos», acrescentou a organização.
Velhas feridas
Em Bruxelas, estranha-se a súbita quebra na produção da fábrica europeia da AstraZeneca, Seneffe, na Bélgica, quando as fábricas britânicas cumprem os prazos – a suspeita é que doses de vacina produzida na Europa estejam a ser desviadas para o Reino Unido, talvez como quid pro quo pela rápida aprovação da vacina da AstraZeneca pelas autoridades de saúde britânicas.
A UE até pediu à farmacêutica que, para compensar o atraso na produção, enviasse para a Europa doses de vacina produzidas no Reino Unido. «A Europa investiu milhares de milhões para ajudar a desenvolver as vacinas contra a covid-19, para criar um bem verdadeiramente global», lembrou Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia. «Agora, as empresas têm de cumprir com o prometido, têm de honrar as suas obrigações», apelou a dirigente. No entanto, após um rotundo não da AstraZeneca, a Comissão Europeia até pediu às autoridades belgas que enviassem investigadores à fábrica da AstraZeneca, para averiguar o caso.
Já o Conselho Europeu – composto pelos chefes de Executivo do bloco, muitos deles desesperados, sob fogo pelo atraso na vacinação nos seus países – foi ainda mais longe. Invocou poderes excecionais, que permitem interferir diretamente na produção de vacina, obrigar farmacêuticas a fazer outsourcing ou mesmo tornar a propriedade intelectual da vacina aberta, avanço o El País.
Enquanto isso, Londres evita agravar a crise, mas arrasta as negociações. Por um lado, o Governo de Boris Johnson está bem confortável com a quantidade de vacinas que tem assegurada; por outro, se a UE cumprir com a ameaça de proibir a exportação de doses produzidas no seu território, o Reino Unido perde totalmente acesso à vacina da Pfizer, que importa de uma fábrica em Puurs, na Bélgica.
«Acha que os cidadãos europeus aceitariam que dessemos esta vacina de alta qualidade aos britânicos, enquanto são tratados como sendo de segunda categoria por uma empresa baseada no Reino Unido?» questionou o eurodeputado Peter Liese, da CDU, o partido governante alemão. «A única consequência só pode ser parar a exportação da vacina da BioNTech, e então estamos no meio de uma guerra comercial», avisou à Euronews.
Alguns até vêm na posição de Londres um certo revanchismo pelos anos em que foram mantidos na corda bamba pela intransigência de Bruxelas, enquanto se negociava o Brexit. «Há elementos dentro do Governo, e na comunidade pró-Brexit, que estão de facto a apreciar muito isto», avaliou Robert Yates, diretor do programa de Saúde Pública da Chatham House, ao New York Times. «E estamos a ver um pouco de retaliação dos nossos vizinhos europeus, que estão fartos disto».
‘Lesma da vacinação’
Para a UE, o atraso da AstraZeneca não podia surgir em pior altura. A farmacêutica americana Pfizer, que desenvolveu a sua vacina com a alemã BioNTech, acabara de anunciar que demoraria mais umas semanas que o esperado a entregar as suas doses, devido à necessidade de renovar a sua fábrica europeia, em Puurs, na Bélgica, de maneira a conseguir escalar a produção.
A expectativa era que a vacina da AstraZeneca e da Universidade de Oxford – vista como a grande esperança para uma vacinação rápida, dado ser muito mais barata, fácil de produzir e de armazenar, não precisando de contentores ultrafrios – colmatasse essa falha, após a sua aprovação pela Agência Médica Europeia (EMA, em inglês), na sexta-feira.
Entretanto, o ministro da Saúde alemão, Jens Spahn, já veio avisar que a vacina da AstraZeneca não receberá uma «aprovação sem restrições», dado os seus ensaios clínicos terem um número reduzido de participantes com mais de 65 anos, havendo dúvidas quanto à eficácia nesta faixa etária. Um possibilidade é que esta vacina só seja dada aos mais jovens, inoculando idosos com outras vacinas.
O que não falta é pressão sobre a UE, que vê a sua campanha de vacinação – que era suposto ser uma enorme demonstração de solidariedade e força, garantindo acesso proporcional à vacina a países membros, aos mesmos preços – cada vez mais atolada.
Até agora, foram inoculados apenas 2% dos europeus, um desastre quando comparado com os 10% do Reino Unido, estima o Financial Times. E há cada vez menos paciência para esperar, como mostram os motins contra o confinamento nos Países Baixos (ver página 53), ou os ataques dos tabloides alemães – «a Alemanha tornou-se numa lesma da vacinação», lia-se na manchete do Bild, esta semana.