Antes de sequer se ir às urnas, em novembro, já se gritava fraude. Nas redes sociais, desinformação massiva misturava-se com discurso de ódio, levando os mais radicais a exigir um golpe de Estado mal se souberam os resultados. Durante meses, o partido derrotado pediu recontagem atrás de recontagem dos votos, apelando ao público que enviasse “provas” de fraude, para reforçar os seus desafios judiciais. Não receberam nada substancial – ainda assim, recusaram admitir a derrota.
Não, não falamos das presidenciais americanas, mas das eleições legislativas no Myanmar, onde a Liga Nacional pela Democracia (NDL), liderada por Aung Suu Kyi, humilhou o Partido da União, Solidariedade e Desenvolvimento (USDP), que representa os militares, obtendo mais de 80% dos votos. Face à escala da derrota, o USDP apenas conseguiu reagir com alegações “trumpianas”, nas palavras de Phil Robertson, diretor da Human Rights Watch na Ásia, à BBC.
A enorme vitória de Suu Kyi – em tempos laureada com um prémio Nobel da Paz, mas cuja reputação foi manchada por acusações de cumplicidade com o genocídio dos rohingya – foi um tiro saído pela culatra. Pôs em causa a tensa divisão de poder entre a líder e as forças armadas birmanesas, conhecidas por Tatmadaw, que lançaram um golpe de Estado esta segunda-feira, horas antes da tomada de posse do novo Parlamento.
Agora, soldados e tanques patrulham as ruas de Myanmar, onde foi declarado o estado de emergência pelos militares, que anunciaram que planeiam ficar pelo menos um ano, em resposta à “fraude” eleitoral. Todos os serviços telefónicos e de internet foram bloqueados durante a manhã, o espaço aéreo birmanês fechado, todos os canais de televisão silenciados – exceto o canal Myawaddy, propriedade do Tatmadaw.
Viram-se enormes filas às portas dos bancos birmaneses, com pessoas receosas a tentarem levantar o máximo de dinheiro possível, mas sem grande sucesso – os bancos também foram todos fechados. Entretanto, boa parte dos dirigentes do NDL foram capturados em rusgas, incluindo Aung Suu Kyi.
A líder – conhecida como “a senhora” desde os tempos em que dizer o seu nome podia acarretar problemas sérios – voltou às mãos dos militares, que já a tinham mantido em prisão domiciliária durante 15 anos, até 2010.
“Apelo às pessoas que não aceitem isto, que respondam e protestem contra o golpe”, escreveu Aung Suu Kyi numa carta vista pelo Guardian, avisando que o Tatmadaw, que dominou o Myanmar durante décadas, planeava impor novamente uma ditadura militar.
Por agora, quem está ao leme do novo regime é o general Min Aung Hlaing, de 64 anos, que lidera o exército. É conhecido como um militar disciplinado e discreto, descreve a Reuters, mas que não tem propriamente um cadastro limpo. Em 2009, o militar foi encarregado das operações no nordeste do Myanmar, coincidindo com a fuga de dezenas de milhares de membros de minorias étnicas birmanesas, sendo as suas tropas alvo de alegações de homicídio, fogo posto e violações em massa.
Aliás, Hlaing chegou a ser alvo de sanções norte-americanas, em 2019, pelo seu papel na limpeza étnica dos rohingya. O que não o impediu de trabalhar de perto com Aung Suu Kyi, que desde que foi libertada se mostrou uma parceira de confiança do Tatmadaw – até a relação azedar nos últimos meses.
Um golpe sem horizonte É difícil perceber exatamente qual é o objetivo final do golpe de Estado desta segunda-feira. Apesar de o NDL estar nominalmente à frente do Governo, a Constituição birmanesa, imposta pelos generais em 2011 como passo rumo a uma democracia “disciplinada”, concede às Forças Armadas uma autonomia praticamente ilimitada, além lhes reservar 25% dos lugares no Parlamento – exatamente a margem necessária para bloquear qualquer revisão constitucional.
“Vale a pena lembrar que o atual sistema é tremendamente benéfico para o exército. Tem completo comando autónomo, acesso a grandes investimentos internacionais e recebe cobertura política dos civis pelos seus crimes de guerra”, salientou Gerard McCarthy, investigador do Asia Research Institute, de Singapura, à BBC.
Com a vasta maioria da comunidade internacional a condenar o golpe de Estado e a detenção de Aung Suu Kyi, tudo isso irá mudar. Contudo, os militares birmaneses ainda poderão contar provavelmente com o apoio da China – o segundo maior investidor no Myanmar, atrás somente de Singapura, injetando o equivalente a quase 18 mil milhões de euros no país – para vetar sanções na ONU.
Ainda assim, o golpe de Estado, mais que uma estratégia pensada, parece ser um escape para o orgulho ferido dos militares, incapazes de aceitar a rejeição eleitoral do seu partido, o USDP.
“É preciso compreender como o exército vê a sua posição no país”, explicou Aye Min Thant, uma jornalista birmanesa, ao canal britânico. “Os média internacionais estão habituados a referir-se a Aung San Suu Kyi como a ‘mãe’. Contudo, o exército considera-se a si mesmo como o ‘pai’ da nação”