Em 100 anos nunca houve um mês de janeiro com tantas mortes

No último século, só no pico da gripe pneumónica, no fim de 1918, houve meses com mais mortes no país. Mesmo assim, morreram mais pessoas no mês passado do que em janeiro de 1919. Especialistas preveem recuo na esperança de vida e novo abalo demográfico com queda de nascimentos. E pedem reflexão nacional.

Na altura, como agora, a pneumónica veio por vagas. A segunda, no final de 1918, foi a maior e mais mortal num Portugal com perto de 6 milhões de habitantes e uma esperança de vida à nascença que rondaria os 35 anos nos homens e os 40 anos nas mulheres. É preciso recuar a esse ano e a esse país, onde os registos demográficos guardados pelo Instituto Nacional de Estatística mostram que todos os anos milhares de portugueses jovens morriam de tuberculose, tifo, escarlatina, sarampo ou varíola, para ver como o vírus da pandemia mais negra do último século fez disparar as mortes para lá de tudo o que na altura era o normal.

Desde 1900 o país registava anualmente entre 110 e 120 mil mortes e em 1918 morreram 248 978 portugueses. Os meses de outubro e novembro foram os mais negros, mostra a Estatística do Movimento Fisiológico da População para aquele ano, um documento produzido só em 1922 pelo que eram então os Arquivos do Instituto Central de Higiene, onde funcionava a secção de estatística e demografia do Estado, que o Nascer do SOL consultou. Em outubro de 1918 foram registadas 70 247 mortes, pelo menos 31 mil atribuídas a gripe, já que milhares de mortes ficaram por determinar, mais do que nos anos anteriores e nos que se seguiram. Em novembro, 47 181 mortes, 18 123 óbitos associados a gripe. Em dezembro contaram-se já menos óbitos, 18 246 mil e em 1919, quando o país teve uma terceira vaga na primavera, a mortalidade foi menor, ainda assim com 152 mil mortes ao longo do ano.

Mais de cem anos depois, e de novo em pandemia, muito separa o país do que se vivia na altura: a população é maior, a esperança média de vida muito mais alta e as taxas de mortalidade, quando se pesam os óbitos por milhar de habitantes, menores. Mas os vários relatórios demográficos do último século disponíveis no INE permitem concluir que o número de mortes desde o início deste ano – com as causas ainda por determinar além da covid-19 – só foi superado no pico da pneumónica em 1918. E mesmo assim nunca tinha havido um mês janeiro com tantas morte em termos absolutos no último século, nem nesses anos pandémicos. Em janeiro de 1919, depois da vaga colossal de mortes no final do ano anterior, morreram 14 955 portugueses. Em cem anos, apenas em janeiro de 1999 tinha havido mais de 14 mil mortes, 14 737 óbitos, num inverno que até aqui tinha os piores registos das últimas décadas, associados a gripe e frio. No mês passado, segundo os dados disponíveis na plataforma nacional de vigilância de mortalidade, morreram em Portugal 19 635 pessoas e a mortalidade continua nestes primeiros dias de fevereiro, embora a baixar, muito acima do normal. Até ontem já tinham morrido no país mais pessoas do que no ano passado nos meses de janeiro e fevereiro juntos e se todos os países continuam a viver a pandemia, no mapa europeu produzido pelo projeto de vigilância de mortalidade EuroMomo Portugal e Reino Unido são os únicos países onde o excesso de mortalidade no início deste ano é considerado «extraordinariamente elevado». Portugal tem o pior índice, superado apenas na primeira vaga da covid-19 em Espanha no ano passado. Só em janeiro, as 9700 mortes acima do que seria expectável (média dos últimos cinco anos), excedem as que ocorrem nos meses de verão e são quase tantas como as esperadas num mês de inverno. É como se o ano, em vidas perdidas, já tivesse tido mais um mês.

 

Covid, frio e falhas na assistência

Além da covid-19, associada a 5785 mortes no mês de janeiro – que só em 31 dias representou 45% das mortes ligadas à pandemia desde os primeiros casos em março do ano passado –, o frio intenso, atrasos na oferta e procura de cuidados de saúde com potencial impacto na mortalidade e diminuição na qualidade da assistência aos doentes num momento de sobrecarga dos serviços são as hipóteses colocadas pelos especialistas ouvidos pelo Nascer do SOL para o excesso de mortalidade que se vive no país. Mas enquanto as causas não forem codificadas a partir dos boletins de óbito, o que só acontece mais tarde – no final desde mês o INE vai publicar as causas de morte em 2019, pelo que será preciso esperar mais meses pelas causas de morte em 2020 e ainda mais para perceber o que se passou este mês – continuam a ser hipóteses e o objeto de estudos académicos. A Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa está a repetir o estudo feito em abril do ano passado, que alertou que não basta comparar períodos homólogos, porque as condições de base se alteram num país em estado de emergência e focado na covid-19: no primeiro estado de emergência houve menos acidentes mas houve também muito menos doentes urgentes assistidos nas urgências dos hospitais. E assim, argumentaram os investigadores, o excesso de mortalidade pode ser ainda maior do que o que sugerem apenas as comparações com meses homólogos de outros anos.

Ana Alexandre Fernandes, presidente da Associação Portuguesa e professora Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP), considera que o pico de mortalidade que se está a viver este ano é conjuntural e deverá atenuar-se ao longo do ano. Mas sublinha desde logo que o país tem um problema sistémico com o frio – e o último mês, além da covid-19, teve essa agravante. «Temos tido janeiros suaves e este foi muito agressivo, com muita chuva e frio, o que é muito mau para doenças respiratórias. Portugal é o país onde se morre mais no inverno com pneumonias, as pessoas não conseguem aquecer as casas, é raro ter-se aquecimento central», diz, admitindo que além de o frio por si só favorecer a propagação do vírus, numa situação como a que o país está a viver as condições de assistência também podem estar a pesar na mortalidade. «Soube de um caso de uma pessoa de 72 anos que morreu de ataque cardíaco e a ambulância não chegou a tempo. Teremos certamente uma conjugação de fatores».

 

Esperança de vida vai recuar

Depois de 2020 já ter sido o ano na história recente com mais mortes – é preciso recuar à década de 40 para encontrar anos com mais de 120 mil mortes – a previsão dos especialistas é que se verifique um recuo na esperança de vida, em particular aos 65 anos, dado que o aumento da mortalidade tem estado a verificar-se sobretudo na população mais velha. Mas as marcas da pandemia na demografia do país serão maiores.

Maria João Valente Rosa, demógrafa e professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa, sublinha que com a mortalidade registada em 2020, o país já vai ter um saldo natural negativo sem precedentes. Os dados ainda não estão fechados, mas tendo em conta as 123 mil mortes registadas no ano passado e os dados preliminares de recém-nascidos que fizeram o teste do pezinho, segundo o Instituto Ricardo Jorge cerca 85 mil bebés no ano passado, com a natalidade de novo a baixar, o saldo natural poderá ser negativo em 38 mil habitantes no país, a maior quebra desde 1918, quando os 178 687 nascimentos não foram suficientes para compensar a perda de vidas . «Muito provavelmente teremos uma diminuição na população. Portugal está com um saldo natural negativo desde 2010. A incógnita é o saldo migratório, que aumentou nos últimos anos e que em 2019 pela primeira vez tinha superado a quebra na população», diz Maria João Valente Rosa. Num ano em que o mundo parou, e em alguns momentos as fronteiras fecharam, é preciso perceber se, entre saídas e entradas, Portugal conseguiu reter mais pessoas ou se a população vai mesmo encolher. Ficar abaixo dos 10 milhões de habitantes é uma hipótese que não se pode a esta altura excluir e que já estava no horizonte a longo prazo. «Não sei se ficaremos já abaixo desse valor, que de certa forma é simbólico, mas é algo que suscita preocupação. O que sabemos é que ultrapassámos os 10 milhões de habitantes em 1995 e que temos conseguido manter a população muito pela questão migratória, que está associada aos nascimentos: 12% das crianças que nascem no país são filhas de mães estrangeiras», salienta a investigadora. «Este ano porventura já não vamos ter um acréscimo na população e acredito que, além da evolução dos óbitos, em 2021 vamos ver os efeitos mais diretos da pandemia nos nascimentos. Acredito que muitas pessoas, por causa da pandemia, adiaram os seus projetos de natalidade. Se já tínhamos 30,5 anos de idade média das mães ao primeiro filho, provavelmente veremos essa idade aumentar».

‘Estamos em implosão demográfica’

Se a pandemia será superada, mais tarde ou mais cedo, para as duas demógrafas importa perceber que o país tem um problema demográfico estrutural. «A sociedade já estava a conviver muito mal com o seu corpo demográfico», resume Maria João Valente Rosa. «Podemos olhar para a pandemia como um intervalo. Ou voltamos para o mesmo filme, que já não estava a ser interessante, ou mudamos. E não vejo essa preocupação, está tudo muito focado no presente», lamenta. Para a investigadora, a forma como a pandemia tem afetado os idosos, das condições à qualidade de vida à realidade dos que vivem institucionalizados, denota o preconceito que continua a existir em relação ao envelhecimento. «Sabemos que o mundo está a envelhecer, a Europa mais ainda e Portugal é um país muito envelhecido. Este é o contexto que temos. Mas envelhecer não é uma doença e apesar de sabermos isso, e de sabermos que as pessoas vivem muito mais tempo em média do que no passado, que temos vidas mais longas – 50% das crianças nascidas hoje em Portugal têm hipótese de passar a barreira dos 100 anos – o que mudámos em relação à nossa forma de viver? Nada», continua. «Na função pública instituiu-se em 1920 que as pessoas aos 70 são afastadas da vida ativa e isso continua assim. Desperdiça-se capital humano, promove-se desenraizamento social. A partir da reforma, já ninguém se interessa com o que se passa com estas pessoas».

Do lado da natalidade, que já tinha afundado com a crise de 2011 e agora não espera melhores dias, Maria João Valente Rosas sublinha que há algo que não se altera no curto e médio prazo: fruto da quebra de nascimentos nas últimas décadas, Portugal já tem hoje menos mulheres em idade fértil. Defende no entanto que se deve perceber e atacar os bloqueios que impede quem pode e quer ter filhos e de os ter. «O inquérito à fecundidade de 2019 feito pelo INE revela que a esmagadora maioria quer ter filhos mas existe sobretudo o projeto de ter um filho. O que leva a não querer passar do primeiro para o segundo filho? E a maioria ainda não tinha nenhum. Há aqui um bloqueio, que não será só financeiro mas a vários níveis. Continua a colocar-se a equação de que para se ser boa mãe não se é tão boa profissional e para se ser boa profissional não se é boa mãe. Pode dizer-se que está tudo melhor, mas a desigualdade salarial entre homens e mulheres é uma realidade. E continua a existir um desequilíbrio de responsabilidades nas tarefas de cuidar dos filhos entre pai e mãe. Pode ser menor do que nas gerações mais velhas, mas existe».

O que fazer? Ana Alexandre Fernandes sublinha que essa é a discussão que tem de ser aprofundada e urgem soluções, já que até aqui os efeitos têm sido escassos. «Acabámos de criar no ISCPS um doutoramento em ciências da população porque é preciso que países como Portugal reflitam sobre que políticas aplicar em contextos de retração, porque é o que temos. Estamos em perda, em implosão demográfica».

Para a investigadora, uma das questões prementes passa pelas políticas migratórias, que a esta altura parecem incontornáveis para garantir algum tipo de estabilidade demográfica ao país, de outro modo condenado a encolher, envelhecer, cada vez com menor resiliência social e económica. «São questões que se colocam perante as vagas de emigrantes, também do Norte de África, até que ponto as pessoas se conseguem integrar, como queremos integrá-las, tudo tem de ser debatido».