Os trabalhos no Parlamento tiveram ontem a covid-19 no centro da agenda. De manhã foram ouvidas a ministra da Saúde e a ministra do Trabalho e Segurança Social. À tarde acabou por haver uma espécie de reunião do Infarmed II, desta vez com especialistas a responder às perguntas dos deputados. Numa primeira sessão, António Sarmento, intensivista no São João, Fernando Maltez, diretor do serviço de doenças infeciosas do Curry Cabral e o antigo diretor-geral da Saúde e presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, Francisco George. Na seguinte, Baltazar Nunes, investigador do Instituto Ricardo Jorge que faz a modelação da pandemia e é um dos peritos ouvidos nas reuniões e Filipe Froes, pneumologista e intensivista, agora com a unidade no Pulido Valente dedicada a doentes com covid-19, e coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos.
Além do reforço da testagem – que passa a ser indicada a contactos também de baixo risco – foi defendido o reforço da saúde pública. Mas também da linha SNS24: “Tem havido falhas no funcionamento da linha de saúde, acredito que haja falhas no cumprimento dos isolamentos domiciliários e no controlo e capacidade de cortar cadeias de transmissão por falta de recursos humanos”, disse Fernando Maltez, que admitiu o “descalabro” nos hospitais.
Outros tópicos comuns foram a necessidade de uma campanha de informação para que as pessoas saibam quando devem recorrer aos cuidados de saúde ou que devem manter a distância e cuidados mesmo após a vacina (que não se sabe ainda se previne infeção) e o reforço da Direção Geral da Saúde. “A DGS tem gente de imensa de categoria mas precisa de quadros, de meios. Saúde pública e DGS é onde se deve investir a sério”, defendeu António Sarmento.
A intervenção mais crítica sobre o desinvestimento na saúde pública foi feita por Francisco George, que considerou que nos últimos anos a DGS foi “sacrificada”: quando começou a ser dirigente no ano 2000 tinha mais de 300 colaboradores, quando saiu em 2017 140 e agora menos. O ex-diretor geral da Saúde criticou os “poderes públicos” sobretudo dos últimos 20 anos e a Assembleia da República por ter deixado “eclipsar” uma revisão da lei de saúde pública e por nunca ter avançado uma revisão constitucional que permita impor o isolamento de doentes infecciosos, o que só pode ser feito em estado de emergência. “Fora do estado de emergência um doente com covid-19 pode pôr-se no metropolitano e ir para casa”, disse, insistindo na necessidade de mudar a lei. E defendeu que “não podemos pedir mais a Marta Temido”.
Desconfinar por regiões e com estratégias locais
Na segunda sessão, Baltazar Nunes, que no Infarmed recomendou o confinamento de pelo menos 60 dias, aprofundou a proposta e defendeu que os testes sejam usados como instrumento no controlo da epidemia. Considerou também que a área dos rastreios epidemiológicos deve ser reforçada. De manhã, no Parlamento, o Secretário de Estado da Saúde revelou que há uma semana havia 56 mil inquéritos pendentes, um balanço que o i solicitou várias vezes ao longo das últimas semanas e que nunca foi disponibilizado. Agora são 4 mil.
Baltazar Nunes recuperou a ideia de uma saúde pública de “precisão” para defender que o desconfinamento seja planeado envolvendo as estruturas locais de saúde pública e a sua capacidade, além dos indicadores epidemiológicos. “Na minha opinião, o RT devia estar sempre abaixo de 1 ou muito perto de 1”, disse. “Esta epidemia controla-se reduzindo a transmissibilidade. Se isso estiver controlado, o impacto nos hospitais e a nível social terá grandes benefícios”. E continuou: “A estratégia deve ser a identificação de casos o mais rapidamente possível e o isolamento dessas pessoas o mais rapidamente possível”. Em alguns contextos, como nos lares, isso poderá ser feito com rastreios sistemáticos dos trabalhadores. Já em algumas localidades pode haver vantagens na testagem maciça da população. “É preciso uma estratégia bem delineada e envolver a estruturas locais. Não podemos ter um plano a nível nacional sem o envolvimento da saúde pública local que permita de alguma forma conseguir efetivar estas medidas. Uma coisa é aquilo que teoricamente achamos que funciona. Para funcionar no terreno é preciso que as equipas consigam implementar essas medidas”, alertou.
Filipe Froes partilhou a mesma ideia de fundo: “A epidemia não se ganha nos hospitais, ganha-se na comunidade” e chamou a atenção que agora, como no ano passado, o desconfinamento será o processo mais difícil. “O confinamento é o ás de trunfo. Corta sempre a vaza. O problema é como continuar a jogar sem o ás de trunfo”.
Para o médico, devia haver um modelo diferente de gestão de conhecimento, propondo uma comissão de aconselhamento científico, mas também de comunicação, com medidas claras e coerentes para todos e uma campanha de informação e reforço do SNS24 para não deixar contatos por esclarecer. Filipe Froes defendeu também que o desconfinamento, além de gradual, seja feito de forma faseada por região e depois por concelho. Avançou ainda uma proposta concreta: abertura progressiva de alguns setores quando se estiver abaixo dos 480 casos por 100 mil habitantes, um dos patamares de risco do ECDC, um RT em torno de 0,7 e uma positividade nos testes abaixo de 5%. Não haver inquéritos epidemiológicos atrasados e a cobertura vacinal dos mais vulneráveis devem ser outros indicadores a ter em conta, defendeu, propondo as balizas da OMS como referência: vacinar 80% dos profissionais de saúde e 80% das pessoas com mais de 80 anos. Para o médico, esperar que todo o país esteja com uma incidência muito baixa pode ter custos elevados e ser difícil de manter no tempo. Nas zonas mais controladas, poderiam começar por abrir creches ou pequeno comércio, envolvendo a comunidade nos objetivos.
Preparar planos para responder a doentes não covid e doentes com sequelas de covid foram outros reptos. Fernando Maltez considerou que a atuação da tutela tem sido boa, apontando como única crítica ao Governo uma decisão de confinamento tardia quando já havia indicadores de que a situação estava a “descambar” depois do Natal. António Sarmento apontou a reabertura precoce de fronteiras e aeroportos no verão como a medida que lhe causou maior apreensão. ”Estamos numa posição altamente desfavorável”, disse, lembrando as ligações à América Latina, Reino Unido e Espanha e corroborando a ideia do colega Roberto Róncon, de que não se devem apontar culpas aos portugueses, que considera que têm sido exemplares. “Estamos ameaçados por uma doença psiquiátrica coletiva. Não podemos dar cabo do nosso ego, do nosso ânimo”, disse. “Temos de parar de culparmo-nos uns aos outros”, pediu.