Anatomia de uma rádio em tempos de pandemia

13 de fevereiro é o Dia Mundial da Rádio. O décimo assinalado desde que foi instituído pelas Nações Unidas, o primeiro desde que a pandemia mudou as nossas vidas. Conhecida e provada a sua importância nos momentos de maior crise para a humanidade, a Luz visitou os bastidores daquele que é o mais ouvido dos…

O Pedro está numa aula digital, a qualquer momento irá acontecer magia». Pedro é o filho de Nuno Markl, o único dos locutores do programa das manhãs da Rádio Comercial que tem feito a sua voz chegar aos ouvintes a partir de casa. Está a meio de uma aula de música. Do estúdio, os companheiros de programa aguardam com a mesma expectativa que os ouvintes. «Tudo isto me parece um erro», atira Vasco Palmeirim no suspense dos segundos em que se aguarda pelo que dali virá. O que teme não é o solo de flauta, é o que Nuno Markl anunciou que faria por cima: «Gimme hope Jo’anna/ Hope Jo’anna/ Gimme hope Jo’anna/ ‘Fore the morning come/ Gimme hope Jo’anna/ Hope Jo’anna/ Hope before the morning come». No final é suposto bater-se palmas e, nas Manhãs da Comercial, pandemia pode ser isto. 

Mas não é só. Breves minutos antes ouvia-se Vera Fernandes descrever aos ouvintes o que se passava do lado de lá, atrás dos microfones: «As saudades que tinha deste estúdio. O Vasco está no auditório e o Markl em casa. A Elsa teve de sair». Há ainda Pedro Ribeiro. É um grupo de cinco aquele que em pandemia e mesmo em estúdio se reúne sem se reunir (e já lá vamos) para o programa que arranca diariamente às sete da manhã, horário que noutro tempo era o do caminho que se percorria entre casa e o trabalho e em que por esta altura, altura de se ficar em casa, encontram ainda alguns dos fiéis ouvintes a dormir. E acorda-se mais tarde, sim, mas a verdade é que, em casa como no carro, Pedro, Vasco, Vera, Elsa e Nuno (como se apresentam, dispensando a formalidade dos apelidos) continuam a ser companhia — talvez mais do que noutras alturas. Provado na História está o papel fundamental da rádio em tempos de grandes crises. Sejam guerras ou sejam pandemias. E é para isso que trabalham, é por isso que, mesmo no pico mais agudo da pandemia de covid-19, tomaram a decisão de continuar a trabalhar a partir da estação. Cada um no seu estúdio para reduzir ao máximo os riscos.

É de manhã, um dia de semana, imaginam-se as gargalhadas de quem acompanha a emissão em casa enquanto se percorrem corredores de uma estação praticamente vazia. Eles, os cinco aos quais a Comercial entrega a missão de preencher o horário entre as 7h e as 11h, estão mesmo aqui confinados cada um ao seu estúdio — exceto Markl, que como os ouvintes já sabem se junta à emissão a partir de casa. Está-se a dias do Dia Mundial da Rádio, celebrado a 13 de fevereiro mas só desde 2012, depois de no ano anterior ter sido proclamado na 36.ª Conferência Geral da Unesco e aprovado numa resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas. Muitas vezes se disse, se proclamou também, o seu fim. Pedro Ribeiro, locutor do programa-charneira da rádio que ele próprio dirige, olha para estes dias, para este último ano, e tem a certeza de que agora ela é mais importante do que nunca.

E comecemos pelo que vemos. Quatro locutores que passam quatro horas diárias juntos sem muitas das vezes se verem. «Há dias em que nem nos vemos, há dias em que saímos e nem estivemos uns com os outros. Porque à medida que vamos chegando cada um vai para o seu estúdio e depois chega o fim do programa e dizemos ‘pessoal, até amanhã’». Chegámos a esta conclusão no outro dia no grupo de WhatsApp das Manhãs: «‘Pá, já não te vejo há muito tempo’». Acredita que não havia outra forma. «Se continuássemos dentro do estúdio, com o nível de contágio que tem havido nas últimas semanas e com a nova estirpe, se vai um, vai tudo», nota. «Decidimos fazer assim até para a nossa sanidade mental. Porque fazer emissão de rádio, sobretudo para mim que teria que estar em casa a controlar cinco vias, mais a via do trânsito, mais a do jornalista, mais os sons do computador, mais o Spotify, mais o WhatsApp, em casa, com as crianças, com a net sempre a oscilar, porque a net durante o confinamento também confinou um bocadinho. Então preferimos arranjar esta solução, e felizmente a estação tem muitos estúdios, mas depois no resto do dia a estação está meia vazia, o que é muito estranho. Havendo essa possibilidade, adaptámos o auditório para o Vasco fazer de lá, o Nuno está em casa. E… so far, so good. Mas são tempos desafiantes».

Desafiantes porque, ao contrário do que temeu que pudesse acontecer, grande parte dos ouvintes manteve-se fiel, e a juntar a esses conquistaram-se outros. Como a condutora de uma ambulância que os contactou para partilhar a sua experiência com a rádio pandemia. Contou-lhes que de início julgaram que poderiam entreter-se com os smartphones nas horas passadas à espera que os doentes que transportavam pudessem dar entrada nos hospitais. Mas que depois perceberam que não. Que um telemóvel não será alguma vez companhia — pelo menos não ao nível da voz que, do rádio, surge como se nos falasse ao ouvido.

Lá fora, a pandemia

Não se julgue que entre os disparates que divertem lhes passará pela cabeça ignorar que lá fora, na vida real da qual os escutam, vida real que toca a todos, também a eles, como fazem questão de lhes lembrar alguns ouvintes, há uma pandemia. «Nós, do lado de cá, também somos pessoas e também temos problemas. Também já estivemos doentes, já tivemos pessoas na nossa família doentes, já tivemos gente que desapareceu. Não somos uns autómatos. E muitas vezes são os ouvintes que fazem ao contrário: fazem por nós. Com as mensagens deles, também nos dão força a nós».

Como por toda a parte, este segundo confinamento gere-se de forma diferente do primeiro, altura em que o programa se fez invariavelmente à distância, distância verdadeira:com cada um a trabalhar de sua casa. Mas depois veio a realidade mostrar-lhes o que historicamente sabiam. «Achámos que se ia sentir muito mais a ausência dos ouvintes. Que as pessoas não iam estar ligadas. Mas não. O WhatsApp continua, os ouvintes ligam para cá… Pensei que, estando em casa, não estivessem tão ligados à rádio, e no primeiro confinamento notámos mais diferença, o programa arrancava mesmo às 8h30, 9h, as pessoas ficavam a dormir até mais tarde. Agora noto que há gente. Não tanta quanto costuma haver, mas há».

E para essa gente trabalham. Gente que está, sublinha o diretor da comercial, também na linha da frente. «Os testemunhos que nos têm chegado durante a pandemia são muito impressionantes. É percebermos que estamos a ser ouvidos na chamada linha da frente e que isso importa às pessoas, pessoas que ou saíram de um turno no hospital ou vão a caminho e vão a ouvir-te e que, às vezes, a única altura do dia em que são capazes de dar uma gargalhada é a ouvir o programa». Não é coisa pouca, mas Pedro Ribeiro conta mais. Conta daqueles que perderam familiares ou pessoas próximas para o vírus, esses que lhe dizem, como um ouvinte dias antes lhe dizia, em palavras que procura reproduzir em discurso direto: «Não consigo rir-me em casa, mas quando entro no carro vocês conseguem fazer-me rir».

Encaram-no como uma responsabilidade, também como um privilégio. «Mostra-nos que este elo de ligação de que é capaz a rádio é muito particular. Chega-se às pessoas de uma maneira única, até para as distrair. A dada altura optámos por não falar muito da covid. Se estás sempre a carpir aquela mágoa, se estás sempre a escarafunchar na ferida, também não sais do sítio». Mas a vida há de se encarregar de a fazer entrar no ar a cada momento, através das mensagens que os ouvintes vão enviando via WhatsApp, reproduzidas em antena. Oequilíbrio entre isso e uma aula online de flauta do filho à qual se junta Nuno Markl é complexo. Mas possível. 

“É difícil. No outro dia ligou-nos um ouvinte com um testemunho muito impressionante a dizer que estava há três meses em casa com a filha, a ser pai e mãe, porque a mãe estava internada num hospital. Dizia: ‘Não tem nada a ver com a covid, é um bocadinho mais complexo, mas acaba por sofrer os efeitos da covid porque demora mais tempo a fazer os exames, demoram mais tempo a chegar os resultados’. E no fim pediu uma música que era a música deles e disse: ‘Dava tudo, tudo para trocar de lugar com ela’. E, de repente, desse testemunho começam a cair histórias em catadupa. «É nesses momentos que se vê que isto tem de facto importância para as pessoas. Quando estamos no ar, quando estamos a passar música e na brincadeira com o resto da malta, não temos ideia da situação em que está muita da gente que nos está a ouvir e do impacto que isto tem nelas».

O poder da rádio

Nos dias em que a sobrecarga dos hospitais se agravou, aqueles dias em que as ambulâncias se acumulavam em filas de 30, 40 às portas do Hospital de Santa Maria, de dentro desse retrato negro que ficará entre as imagens mais marcantes de um ano que mal tinha ainda começado e já se adivinhava difícil, entrou no ar também um desses condutores que ali, com os doentes dentro da ambulância, aguardaram dez horas ou mais a fio. Contava os seus dias: dias inteiros a transportar doentes em situações frágeis, tentando oferecer o conforto possível (tantas vezes impossível) aos familiares. Essa chamada, conta, receberam-na dessas filas do Santa Maria. «Sentimos que estamos um bocadinho a fazer uma tarefa de levantar a moral das tropas, que é o que nos dá também razão nesta opção de virmos para cá e fazermos isto o mais perfeitamente possível do ponto de vista de conforto de escuta. As pessoas merecem esse esforço». 

Esforço sobre-humano quase que se aplica também às condições em que a Comercial, rádio habituada a recordes de audiência, mas consciente da responsabilidade que esses números trazem com eles. «Isto é histórico. Durante guerras, durante qualquer problema social que exista, as pessoas encontram companhia na rádio, de facto. Companhia e proximidade, intimidade. As pessoas com a rádio, com as pessoas da rádio, sentem uma confiança que não sentem com quem está a apresentar por exemplo um programa de televisão, que tem mais show off, é mais artificial. Aqui, como é uma voz que te chega ao ouvido, é muito humano. Por isso estamos também a tentar chegar às pessoas de outras maneiras: a trabalhar muito nas redes sociais, a não parar o programa de entrevistas às oito da noite, fazendo as entrevistas sabe Deus como, com os convidados à distância. Porque acho que as pessoas sentem falta de uma boa conversa, sentem falta da companhia que a rádio pode dar».

O contacto direto e diário com os ouvintes é o que a cada dia vem renovar-lhes a certeza de que há um sentido de missão nisto. «Temos demonstrações diárias dos efeitos que vai ter, que já está a ter, a pandemia para a saúde mental das pessoas, dos efeitos para outras doenças que não têm a ver com a covid e que levam por tabela. Mas a solidão é uma coisa muito impressionante. É duro, muito duro. Sobretudo para as pessoas que já vivem num regime propenso ao abandono. Até as pessoas que moram nos lares estão fechadas no quarto, sem contacto com a pessoa do quarto do lado.

Não é só um isolamento para fora, é um isolamento lá dentro também. Nesses quartos, se tiverem o rádio ligado, menos mal. Se ouvirem uma palavra que lhes é dirigida a eles, especialmente, já há alguém que está ali». E eles fazem questão de estar. De continuar a estar.

Sobre a importância histórica da rádio em momentos como este já muito se escreveu, constatou, teorizou. E para quem duvidasse que na viragem para a terceira década do século XXI esse papel se mantivesse, há os números. De acordo com um artigo publicado recentemente em Espanha na Index.comunicación, revista científica espanhola para a área da comunicação aplicada, o consumo daquele que é um dos mais antigos e tradicionais meios de comunicação aumentou em Espanha durante a pandemia, com a maioria dos ouvintes a estarem sintonizados entre uma e duas horas diárias, entre trinta minutos e uma hora ou mesmo entre duas e três horas. Mesmo em confinamento, as manhãs continuaram a ganhar, segundo esse estudo da autoria de Emma Rodero, da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. 

Mas verificou-se um dispersar das audiências pelas restantes partes do dia nas alturas em que as pessoas foram obrigadas a ficar em casa. E enquanto as estações especializadas em música registaram um decréscimo na audiência, as rádios generalistas passaram a ser mais consumidas. Um movimento semelhante aconteceu também no Reino Unido, com a BBC a divulgar números que apontam para um aumento de 18% nas audiências das suas rádios. Em Itália, outro dos países europeus mais fustigados pela pandemia, sobretudo na primeira vaga, o aumento é mais modesto, mas ainda assim um aumento. De acordo com os dados da Associação das Rádios Europeias na ordem dos 2,4%. Já nos Estados Unidos, as audiências aumentaram 28%.

E voltamos à Comercial e a Pedro Ribeiro: «Já se disse muitas vezes que a rádio ia morrer. Agora, em 2021, arranjou-se uma maneira de os ouvintes estarem ainda mais perto da rádio, através do WhatsApp. Acho maravilhoso os ouvintes terem a lista de contactos e na lista de contactos terem a rádio deles. Mandam áudios, mensagens escritas, e são milhares deles. Não param de cair, é impossível ler todas. Às vezes fazem o programa sozinhos com as coisas que dizem».

13 de fevereiro é o Dia Mundial da Rádio, comemorado neste ano pela décima vez. Em Portugal, a primeira em que isso acontece em pandemia. A pandemia que pelas Manhãs da Comercial, um desses lugares em que se mede o pulso a uma sociedade, se espera que passe rápido. «Porque isto é duro. Sentimos que há cada vez mais gente sozinha, cada vez há mais gente triste, cada vez há mais gente deprimida. Olho todos os dias para os números com alguma esperança. Os números têm descido e nós no programa fazemos também essa apologia para as pessoas respeitarem as normas, para se protegerem. Quanto mais respeitarmos mais cedo saímos disto».