Portugal bateu recordes de contágios e de óbitos associados à covid-19 no arranque de 2021, com o número de mortes a duplicar em menos de mês e meio. Foram ultrapassados na última semana os 15 mil óbitos associados à pandemia, quando no final de 2020 tinham sido registadas em todo o país 6972 mortes. Apesar do balanço negativo, Pedro Simas, virologista e consultor científico do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social na resposta à pandemia, defende que a testagem preventiva que começou nos lares em outubro permitiu mitigar os efeitos da terceira vaga da covid-19, que de outra forma teria levado a mais surtos e mortes em residentes de instituições. Nunca houve tantos casos nos lares e no início da semana passada havia 378 surtos ativos e mais de 12 mil utentes e funcionários infetados, com 22% dos lares com casos positivos, mas o investigador do Instituto de Medicina Molecular salienta que apesar de terem sido fortemente afetados, a diminuição da proporção de mortes associadas a lares indicia que o programa de testagem regular, que não foi implementado noutros setores nem na comunidade, foi um “fator protetor”.
“Até outubro as mortes associadas a lares representavam 40,6% dos óbitos associados à covid-19 no país. A partir de outubro representam 27% dos óbitos no país e desde o início de janeiro representam 24,2% dos óbitos, o que significa que 75% das mortes nesta terceira vaga foram pessoas que se infetaram fora das instituições”, diz ao i o investigador.
Dados fornecidos ao i pela DGS revelavam já que até 1 de fevereiro registaram-se em Portugal 3574 óbitos acumulados por covid-19 de pessoas residentes em lares (óbitos ocorridos dentro dos lares ou em hospitais), dos quais 712 no Norte, 972 no Centro, 1459 em Lisboa e Vale do Tejo, 369 no Alentejo e 62 no Algarve. Se a nível nacional o mês de janeiro representou 45% das mortes associadas à pandemia desde março, registaram-se cerca de 1400 mortes entre residentes de lares, com o mês de janeiro a representar 39% do total de óbitos nos lares.
“Evitaram-se surtos em 734 lares”
Para o investigador, continua a haver trabalho a fazer e para já a vacinação, que em janeiro esteve focada nos lares, não explica as diferenças. Pedro Simas considera que houve mesmo numa primeira fase um efeito contraproducente: “Houve muitos lares que principalmente na primeira e segunda semana depois da vacina tiveram surtos, mais do que o normal. Houve um excesso de confiança de que a vacina teria um efeito imediato e isso foi dramático”.
Pedro Simas aponta as próximas duas semanas para se começar a perceber o efeito da vacinação. Já a testagem defende que deve ser alargada a outros setores e agora está já prevista para escolas e fábricas dos concelhos com maior risco.
Simas explica a metodologia implementada: desde outubro, de forma progressiva e primeiro nos lares maiores, começaram a ser testados 25% dos funcionários dos lares em quatro períodos do mês, com o objetivo de todos os funcionários serem testados pelo menos uma vez por mês. “Foi identificado que os funcionários eram fonte de introdução da infeção nos lares e desenvolveu-se um programa de testagem. Portanto neste caso o consenso científico foi aproveitado pelo Ministério do Trabalho e da Segurança Social. Não se podia fazer quatro testes por mês a cada funcionário, logisticamente não seria possível. O que se pensou é que testando um grupo por semana, uns serviam de sentinela para outros”, diz o investigador. Desta forma identificaram-se desde outubro 734 lares com funcionários infetados, a maioria já este ano. “Significa que potencialmente podem ter-se evitado surtos nestes 734 lares”, sublinha Simas.
Os números foram avançados na semana passada no Parlamento pela ministra Ana Mendes Godinho, que adiantou que, desde outubro, foram feitos 230 mil testes em lares. Para Simas, o programa desenvolvido pelo ministério foi eficaz, não só pela testagem como por ações de formação dirigidas a colaboradores de lares e acredita que foi a combinação de estratégias que permitiu mitigar o impacto de uma onda que colocou Portugal entre os países com mais casos e mortes por milhão de habitantes em todo o mundo, recorda. “Foi mau mas dentro disso o impacto nos lares não foi tão grande como poderia ter sido”.
“Imunidade dos grupos de risco deve ser a prioridade”
O investigador defende a necessidade de reforçar a comunicação e informação de pessoas que contactam com os grupos mais vulneráveis, como cuidadores informais, bem como a testagem. “A nível mundial estamos com menos 27% novas infeções do que no pico em janeiro, porque as pessoas estão confinadas, mas o risco de uma quarta vaga nunca foi tão grande e é preciso ter isso em conta quando se começar a desconfinar. Temos de continuar a transmitir os cuidados à população. Saber que é preciso continuar a usar máscara e reduzir ao máximo os contactos e da parte do Estado é preciso reforçar a testagem, e testar com inteligência de forma preventiva, mas também reforçar a capacidade para fazer os rastreios de contactos, que não foram feitos em Portugal nos últimos meses como deviam ter sido e para isso existia consenso. Um dos fatores que contribui para esta vaga foi esse.”
Para Pedro Simas, perante a escassez de vacinas e o risco de uma nova vaga, é necessário rever o programa de vacinação e “acelerar a proteção dos grupos de risco”, defendendo o espaçamento até seis semanas da primeira e a segunda toma, uma proposta que também já foi feita pela comissão nacional de vacinação e até aqui não foi seguida pelo Governo. “Com os resultados que estamos a ver nas vacinas na redução de hospitalizações e mortes, nomeadamente em Israel e no Reino Unido, a prioridade não deve ser a imunidade de grupo mas a imunidade dos grupos de risco, que é o que nos permitirá ter menos hospitalizações e menos mortes. Até termos a imunidade dos grupos de risco, o impacto de o aumento de casos será sempre um risco para os mais vulneráveis. E aqui não estamos a falar de ter 70% dos grupos de risco vacinados, precisamos de ter 100%”, defende Pedro Simas.
Para o investigador, “esta é outra área onde hoje já existe consenso”, sublinha, depois de o primeiro-ministro ter apelado ao consenso entre investigadores sobra as medidas e linhas vermelhas para o país desconfinar. “Dada a escassez de vacinas, que em Portugal é marcante – só vamos receber metade das vacinas previstas este trimestre – seria muito importante espaçar a primeira dose da segunda dose dentro dos intervalos de segurança. E essa é uma recomendação que já existe, tem é de ser equacionada pelos decisores.” Em entrevista ao Público publicada este fim de semana, a diretora-geral da Saúde reitera que é algo em cima da mesa. Está também a ser estudado o uso de duas máscaras.