Hélène não escolheu propriamente a profissão que adotou, nem tinha grandes condições para isso. Afinal era uma pobre moçoila do campo, filha de uma família de camponeses remendados de Plouhinec, Morbihan, não longe de Lorient, na Bretanha. Aos 7 anos já tinha perdido a mãe e esfalfava-se no trabalho que lhe ia sendo imposto por duas tias às quais ficou entregue pelo pai que não tinha nem tempo nem pachorra para a aturar os filhos. As tias eram estupores do pior. Trabalhavam para o vicariato de Burbry, e Hélène nunca foi verdadeiramente tratada como uma criança, como merecia, embora este simples facto não justifique as mais de 60 pessoas (os números variam de autor para autor) que matou ao longo da sua carreira de maior envenenadora da história da França.
As tias tinham tanto empenho na jovem Hélène Jégado que, depois de suportarem o seu encargo durante dez anos, aconselharam o abade de Séglien a tomá-la como cozinheira, gabando-lhe amplamente as sopas. Não restavam dúvidas que os temperos de Hélène eram, de facto, imaginativos. O abade, por exemplo, tratou de se queixar logo no segundo dia que a sopa de legumes tresandava a cânhamo. A rapariga não só não negou que acrescentara uma boa quantidade daquela variedade de cannabis como acrescentou que considerava um produto fundamental para erguer o moral do clérigo que sentia estar muito em baixo.
Nascida no dia 17 de junho de 1903, já quase nos vintes não aguentava grandes temporadas em casa dos presbíteros que lhe ofereciam emprego. O que não é de estranhar se tivermos em conta a forma muito pouco ortodoxa como desempenhava as funções, tanto de cozinheira como de mulher a dias. O seu profundo desequilíbrio mental levava-a a crer que, nos momentos de maior aflição, encarnava a figura de Ankou, uma personagem da mitologia bretã representada por um homem muito grande e muito magro, com o esqueleto à transparência, fazendo-se acompanhar por um instrumento de ferro que tinha a suprema utilidade de enviar os ímpios para os quintos do inferno.
Encarnando ou não Ankou, Hélène Jégado passou os anos seguintes em bolandas. A primeira suspeita de envenenamento que lhe caiu sobre os ombro foi em 1833, em casa de outro clérigo que a tomara aos seus serviços, François Le Drogo, que habitava um lugarejo chamado Gern. Durante quatro meses, de junho a outubro, sete habitantes da casa foram apanhados pela senhora da gadanha, incluindo o crente e probo sr. Le Drogo. Valeu-lhe a representação perfeita do papel de uma desempregada destruída pela morte dos patrões e as sequelas do surto de cólera de 1832 para lhe garantirem uma absolvição sem espinhas. Hélène estava livre como um pássaro. Um pássaro de maus fígados. Que não tardaria a atacar.
De terra em terra
Hélène tornou-se uma saltimbanca. Nos dois anos que se seguiram passou por todas as terras das redondezas: Séglien, Guern, Auray, Hennebont, Locminé, Lorient, Pontivy… Foi deixando os serviços de limpeza para se especializar na cozinha. E era, indiscutivelmente, uma culinária especial tanta gente foi desaparecendo por conta das suas iguarias: mulheres, crianças e até um grupo de soldados de um bordel militar de Port Louis onde ela se prostituía para compor o salário. Mas as suas vítimas favoritas eram membros da igreja. Tinha uma incontrolável fixação por padres.
Em 1849, Hélène Jégado estava em Rennes. E não voltaria a sair de lá. Cozinheira em casa de monsieur Victor Jabot, um funcionário de registos, que tinha sob a sua alçada tanto a mulher, Charlotte Brierre de Montvault, os pais desta e o filho pequeno, de 7 anos, Louis Joseph Albert Rabot, viu-se enredada numa camisa de onze varas quando decidiu, vá lá saber-se porque espremer de meninges, envenenar o miúdo. Não se contentando com ver o petiz com os pés para a cova, a estrebuchar como um animal atingido a tiro, tratou de envenenar igualmente a mãe e a avó do infeliz. Pelo caminho, morreram uma camareira e uma ajudante de cozinha, à laia de entretenimento. Foi o fim do rasto macabro que Hélène ia deixando atrás de si.
Uma das figuras gradas da justiça francesa desse tempo, um mestre do Direito chamado Théophile Bidard de la Noë, e que tinha tido Hélène como empregada durante uns meses, custando-lhe a vida da secretária, resolveu entrar em ação. As várias autópsias feitas às vítimas mais recentes revelaram grandes quantidades de arsénico no aparelho digestivo. O problema é que Hélène mentia com todo os dentes que tinha na boca, e não eram muitos, e com um descaramento divino. Negou tudo de forma veemente o que lançou dúvidas na cabeça do juiz de instrução de Rennes que sacudiu a estucha enviando o processo para o Cour d’Assises d’Ille-et-Vilaine, um degrau acima na hierarquia da justiça.
A lista de vítimas de Hélène parecia uma lista telefónica. Em Locminé, fez-se sócia de uma costureira, Marie-Jeanne Leboucher que não durou muito mais tempo entre os vivos. Partiu para a planície da liberdade suprema na companhia da sua filha de 10 anos, deixando um filho de 12 numa cama de hospital contorcendo-se nas vascas da agonia. Piedosa, a vizinha, a viúva Lorey ofereceu-se para receber Hélène em sua casa após a morte de madame Leboucher. Como forma de agradecimento, comeu uma refeição principesca confecionada com o carinho e os temperos do costume: morreu dois dias mais tarde.
Apesar de toda esta carnificina, Hélène Jégado conseguia arranjar sempre alguém que a recebesse de braços abertos, acreditando piamente que tudo não passava de uma infelicidade que a perseguia de forma implacável. Por exemplo, madame Toussaint, amiga da viúva Lorey, abriu-lhe desde logo as portas de casa e não tardou a ver-se a braços com quatro membros do pessoal em forma de cadáver. Nessa altura, segundo os cálculos feitos posteriormente pela Sûreté, Hélène já tinha despachado com a maior das facilidades 16 vítimas. E a conta ia crescendo a olhos vistos.
Em 1835 estava em Auray, trabalhando num convento, um dos seus lugares de eleição. Viu-se despedida num abrir e fechar de olhos. Não por ter morto alguém, que não teve tempo para isso, mas por ter armado uma tranquibérnia com padres e freiras, entrando numa muito desagradável onda de vandalismo e sacrilégio. Não. Hélène Jégado não era decididamente uma senhora.
A caminho do fim
Um dos crimes mais infames de Hélène foi perpetrado no Château de Soye, em Ploemeur, em 1841. Contratada para tomar conta de uma menina de saúde frágil, Marie Bréger, Hélène não teve contemplações em tentar arribá-la às custas das suas canjas de arsénico. Querubins terão transportado o pequeno anjo para um céu de supremo azul mas, mais uma vez, a grande envenenadora passava ao lado das acusações. Nos anos que seguiram, as mortes parecem ter parado de forma repentina e inexplicável. Medo? Dificilmente. Falamos de uma psicopata que não perdia tempo com sentimentos. Foi várias vezes chamada para interrogatórios, revistaram-lhe os quartos onde viveu e nunca encontraram vestígios de arsénico. Hélène parecia destinada a passar ao largo dos seus crimes.
Entretanto, à medida que os cadáveres diminuíram, Hélène Jégado passava a ser a principal suspeita do roubo de peças valiosas das casas nas quais trabalhou. Ganhara outra psicose: a cleptomania. A chegada a Rennes marcaria o fim da sua existência atribulada. Empregada em casa de Théophile Bidard, professor universitário, rapidamente regressou aos velhos vícios e mandou desta para melhor duas das serventes mais antigos do professor, Rose Tessier e Rosalie Sarrazin. A assassina foi tão precipitada em declarar alto e a bom som a sua inocência que fez cair em cima dela um mundo de suspeitas. No dia 1 de julho de 1851 foi detida e acusada de 23 mortes por envenenamento. Mais uma vez a sorte bafejava-a: todos esses casos tinham tido lugar há mais de dez anos e a lei não permitia que voltassem a ser investigados. O julgamento teve início no dia 6 de dezembro de 1961, mas a besta assassina só estava indiciada por três crime de tentativa de homicídio e dez crimes de furto. Era praticamente uma brincadeira.
O comportamento de Hélène no Tribunal de Rennes foi, no mínimo, tão estranho como toda a sua vida. Basicamente, não se encontrava um dos dados fundamentais que sustenta qualquer homicídio: motivo. A ré tanto se mostrava submissa, murmurando frases apaziguadoras em direção ao juiz e aos procuradores como, de repente, lhe saltava a tampa e desatava aos gritos, berrando pela sua inocência e insultando todos os membros do tribunal. Chegou ao cúmulo de ter cara de pau suficiente para dizer que nem sequer sabia o que era arsénico. A sua loucura era, agora, exibida nesse grande palco de uma sala de tribunal. Exposta para todos os que queriam ser confrontado com a sua verdadeira e tenebrosa natureza.
A advogada de defesa, Magloire Dorange, tentou atingir o cerne do coração dos acusadores, divulgando que Hélène sofria de cancro, o que lhe provocava alterações no comportamento cerebral, e que seria desumano privá-la da liberdade quando estava a caminho da morte. O juiz teve para com a acusada a mesma piedade que ela tivera com as suas inúmeras vítimas, verdadeiramente impossíveis de serem identificadas na sua totalidade. A condenação foi linear: morte por guilhotina.
Hélène Jégado ficou mais famosa depois de morta do que durante a vida. A sua vida de assassina serve, hoje em dia, para atrair turistas, sobretudo aqueles que têm um gosto especial por matérias sinistras. Além de livros de cordel e revistas com esquissos com as figuras novelescas, o Museu da Bretanha, em Rennes, possui a máscara mortuária de uma das mais insensíveis mulheres do mundo. Outros, mais brincalhões, avançaram com pilhérias como o Gâteau breton d’Hélène Jégado, vendido nas pastelarias mas sem o célebre tempero da criminosa, claro está. Fleur de Tonerre é a mais precisa biografia de Hélène, escrita por Jean Teulé e publicada em 2013. Três anos mais tarde surgiu a versão cinematográfica.
No dia 26 de fevereiro de 1852, com 48 anos, a cabeça de Hélè Jégado tombava para dentro do cesto do carrasco. A lâmina afiada da guilhotina decepara-lhe o pescoço no Champ de Mars. Na véspera, pedira para se confessar perante o padre Tiercelin, logo ela que fizera um tremendo desbaste na população presbiteriana.
Teulé defende, na sua obra, que estamos perante a maior assassina em série do mundo. Durante dezoito anos a fio matou gente a torto e a direito e só não ficou ligada a mais homicídios por a Europa viver a tal ressaca de peste e cólera que abatiam seres humanos como tordos. Mas algo permitiu a Teulé manter a sua teoria intacta: Hélène fazia questão de guardar relíquias dos infelizes a quem dava cabo da vida e uma busca posterior aos seu pertences divulgou um parafernália impressionante de objetos pessoais de todas as proveniências. Os número que apresenta ronda os 80 homicídios. Mas os números são discutíveis, como sabemos.
A imprensa intitulou o caso como La Nouvelle Brinvilliers, comparando Jégado a uma célebre assassina, Marie-Madeleine Anne Dreux d’Aubray, marquesa de Brinvilliers, que foi decapitada na Place de Gréve, em Paris por ter envenenado várias pessoas, entre as quais o seu pai. Mas, curiosamente, o caso de Hélène foi atirado para as páginas interiores e escapou às manchetes, bem mais interessadas pelo golpe de Estado de Charles-Louis-Napoléon Bonaparte, sobrinho do Napoleão autêntico, que retomou o rumo do império e pôs um ponto final na II República francesa. Mas, pelo caminho, mais um pormenor macabro rodeou a vida de Hélène: Jean-Baptiste Baudin, médico especializado em doenças de estômago, citado como testemunha de acusação no julgamento, apareceu assassinado no faubourg Saint-Antoine no dia 3 de dezembro.
Se a culpabilidade de Hélène nunca foi verdadeiramente posta em causa, as razões para tantos e tão diversos homicídios ficou por explicar. O seu cérebro foi estudado ao pormenor na Faculdade de Ciências de Rennes numa operação levada a cabo pelo eminente dr. Faustino Malaguti. O resto do corpo foi atirado para uma vala comum do Cemitério do Norte.
A simplicidade do seu método de matar baralhou por muitos anos os investigadores. Na verdade, Hélène atuava com um à vontade quase infantil. Aceitando trabalhar para presbitérios ou para famílias da média/alta burguesia, aproveitava o seu tempo na cozinha para acrescentar o pó branco, como se chamava ao arsénico, na sopa ou nas goludices que seguiam para as mesas das suas vítimas. Mas, passaram-se os anos, e ainda ninguém apontou um verdadeiro motivo para a sua veia assassina. Matava por prazer, pelos vistos. Pelo prazer de decidir a vida e a morte dos que a rodeavam como se fosse uma espécie de Deus…