O mês de janeiro bateu recordes de trabalho extraordinário no Serviço Nacional de Saúde, depois de 2020 já ter sido o ano com mais horas extra entre os profissionais de saúde de que há registo. Os dados agora disponíveis no Portal da Transparência do Ministério da Saúde, que o i analisou, mostram que janeiro, mês em que disparou o número de doentes com covid-19 internados nos hospitais e em que houve também mais situações de baixa e isolamento profilático de profissionais, obrigou a mais de 2,3 milhões de horas extras nos hospitais, no conjunto de todas as profissões. Habitualmente são os médicos que fazem mais horas extra, mas a discriminação por grupo profissional ainda não está disponível. Mesmo em 2020, nunca tinha havido um mês com tanto trabalho suplementar no SNS.
Para as ordens dos Enfermeiros e dos Médicos, o aumento do recurso a trabalho extraordinário era expetável face à dimensão que assumiu a pressão nos hospitais, onde chegou a haver perto de 7 mil doentes hospitalizados com covid-19, e os relatos de maior sobrecarga dos profissionais chegam sobretudo da linha da frente da resposta à pandemia. Consideram que agora que começa a haver mais alívio nos hospitais, é necessário avaliar o impacto físico e psicológico nos profissionais e programar a retoma de atividade com períodos de descanso e reforço das equipas.
“A quarta vaga, e esperando que não venha uma quarta vaga de covid-19, será a da saúde mental”, diz ao i Ana Rita Cavaco, bastonária dos enfermeiros, que recorda que já antes da pandemia a ordem tinha alertado para a necessidade de reforçar os rácios de enfermagem no SNS, abaixo das recomendações internacionais. “Uma das coisas que nos preocupam para esta fase de retoma é, de facto, a exaustão dos profissionais. As pessoas têm ideia de que, nos cuidados intensivos, um enfermeiro trabalha 35 horas por semana, quando estão a fazer 80, o que é impensável em serviços com esta intensidade. Não sabemos como vão sair disto. Temos de arranjar estratégias para os ajudar. Muitos hospitais já têm equipas de apoio psicológico, mas achamos que poderemos arranjar novas formas de apoio”, defende. Para o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, a retoma de atividade dos hospitais deve também ter em conta a sobrecarga a que estiveram expostos os profissionais nos últimos meses, garantindo, nomeadamente, períodos de descanso e gozo de férias suspensas nos últimos meses. “A sobrecarga de trabalho é, neste momento, uma das principais queixas dos médicos. Queixam-se, mas fazem. Como temos poucos recursos humanos e como, neste combate, precisamos de manter a diferenciação e equipas com especialistas, esse esforço teve de ser feito e foram feitas muito mais horas extra do que o habitual, que já era elevado. Em 2019, os médicos fizeram mais de 6 milhões de horas extra e no ano passado terão sido muitas mais, além do número de horas que se terão contratado a prestadores de serviço”.
Miguel Guimarães sublinha que os relatos de médicos, mesmo mais seniores, a fazer vários turnos de 24 horas foram comuns, com impacto na saúde física e no desgaste mental dos profissionais. “Há muitos médicos que se queixam, mas são poucos os que procuram ajuda”, salienta o bastonário, que adianta que a ordem pretende também reforçar o apoio através do gabinete de apoio ao médico criado em 2019 para acompanhar situações de burnout, que já na altura eram uma preocupação crescente. Agora, um estudo divulgado esta semana indica que um em cada três profissionais de saúde apresenta sinais de esgotamento severo. “Vamos passar agora por uma fase difícil. Vamos começar a desconfinar, e começa a haver muita pressão para que isso aconteça mais cedo. As coisas estão a melhorar nos cuidados intensivos e nas enfermarias, mas os profissionais de saúde estão muito cansados e este é o momento para se lhes dar alguma coisa. Não é um prémio, mas é tempo para poderem fazer férias, para descansarem um bocado, mesmo sabendo que há muito para recuperar. A recuperação vai ter de ser feita e os dados de quebra de atividade são arrepiantes, mas a pressão sobre os profissionais de saúde não pode ser um contínuo. Precisamos de responder aos doentes, mas conseguir dar algum equilíbrio às pessoas mais esgotadas, provavelmente as que estão mais ligadas às medicinas, pneumologia e infecciologia”, defende Miguel Guimarães.
17,3 milhões de horas extra em 2020 Voltando aos dados, os registos disponíveis no Portal da Transparência do Ministério da Saúde mostram que ao longo de 2020 foram feitas, no total, 17,3 milhões de horas de trabalho suplementar no SNS, o que inclui trabalho extra diurno, noturno, em dias de descanso complementar e obrigatório e em dias feriados. Só em período noturno foram feitas 7,7 milhões de horas extra, além dos 27 milhões de horas que os profissionais trabalharam à noite em período normal de trabalho. Em 2018, já tinha aumentado o recurso a trabalho extraordinário e, em 2019, já tinha havido um recorde de horas extra no Serviço Nacional de Saúde (14,5 milhões), na altura associado pelos administradores hospitalares ao regresso ao horário de 35 horas de trabalho semanal, que não foi totalmente compensado por contratações em todos os hospitais. Em relação a 2019, 2020 terminou com aumento de 19,5% no trabalho suplementar. O ano findou com um reforço de 6,7% nos trabalhadores do SNS face a dezembro do ano anterior. Já em janeiro de 2021, revelam dados disponíveis no balanço social mensal disponibilizado pelo Ministério da Saúde, o SNS contava com 147 075 trabalhadores, mais 9889 do que no início do ano passado. Enfermeiros e assistentes operacionais foram os grupos profissionais em que aumentou mais o número de trabalhadores. Há agora 48 mil enfermeiros vinculados ao SNS. A ordem defende, no entanto. que deveriam ser 90 mil.
Fábio Oliveira, delegado sindical e enfermeiro na linha da frente da resposta à covid-19 no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, admite que janeiro foi um mês “muito puxado”: quer na carga de trabalho, quer na intensidade do que se viveu nos hospitais, do número de doentes a acompanhar ao número de mortes. Fez mais de cinco turnos extra de 12 horas, quando o normal eram turnos de oito horas. “Foram mais de 80 horas extra e sei de colegas que fizeram mais de 100”. O cansaço acusa e no regresso a alguma normalidade, num hospital onde as enfermarias covid chegaram à “letra q”, ilustra, admite que a resistência não é igual para todos e depende muito “das estratégias de cada um”, considerando que os assistentes operacionais foram também muito sobrecarregados. Acredita que houve tentativa de contratar profissionais nos hospitais, mas os contratos não eram os mais apelativos, inicialmente por quatro meses e depois por tempo indeterminado, mas podendo ser dispensados quando deixasse de haver necessidade. “E a necessidade já existia”, defende.