Se aceitarmos uma democracia de fachada em que basta marcar eleições sem cuidar das condições para que a verdadeira democracia se efetive, sem condições adequadas para fazer campanha, sem a capacidade dos candidatos se aproximarem dos eleitores, se nos conformarmos com o mero cumprimento de calendário eleitoral como suficiente para a prática democrática, então não haverá razão para adiar as próximas eleições autárquicas.
A democracia tem uma dimensão formal e outra substantiva. A formal cumpre-se com os atos eleitorais e com o normal funcionamento dos órgãos institucionais. A substantiva é aquela em que a democracia se realiza na relação dos políticos com os cidadãos.
Neste período de pandemia, uma e outra foram limitadas de facto. Não basta que não haja restrições à atividade política para a democracia não ser afetada. Na realidade, há praticamente um ano que a democracia está diminuída. Dou como exemplo o município de Lisboa: a Assembleia Municipal há quase um ano que não reúne presencialmente, nem o plenário nem as comissões. Claro que reuniu através de videoconferência, mas é consensual que a democracia não é plenamente exercida por intermédio de um monitor de um computador. O mesmo tem acontecido nas câmaras municipais, nas assembleias de freguesia e até na Assembleia da República. Esta é a dimensão formal que foi afetada.
Com a aproximação das eleições autárquicas, a democracia substantiva ganha relevância. Aliás, como em nenhum ato eleitoral, a democracia celebra-se de forma intensa com a mobilização de milhares de candidatos às câmaras, assembleias municipais e assembleias de freguesia que realizam campanhas eleitorais por todo o país, nas cidades, nos bairros e nas aldeias, contactando com os seus potenciais eleitores, procurando identificar problemas e propondo soluções. Esta é a política mais efetiva e a mais estimulante.
As eleições autárquicas preparam-se com vários meses de antecedência e as campanhas começam meses antes das eleições. É manifesto que as condições atuais (e as que se perspetivam para os próximos meses) não permitem o desejável contacto próximo com os eleitores. E, ao contrário de eleições, como por exemplo as presidenciais, nas autárquicas não é possível assegurar uma campanha (milhares de campanhas) mediada pela comunicação social, nem seria aconselhável depender dessa mediação. E também não bastam as redes sociais para chegar de forma eficaz a todos os eleitores. Aliás, quem defende a substituição de campanhas com contactos de facto por campanhas através de redes sociais desconhece a realidade do país.
Estamos perante um desafio: conformarmo-nos com o cego cumprimento de um calendário, sacrificando a qualidade do exercício da democracia, ou atendermos à importância das condições para a prática política e ajustarmos o calendário para permitir melhores condições para a realização das campanhas eleitorais.
Há um fator especialmente perverso na manutenção do calendário eleitoral: para além da dificuldade em fazer campanha durante a pandemia, quem está no poder, pela natureza do exercício do mandato, detém uma capacidade de chegar junto dos cidadãos superior aos adversários políticos. Na atual situação de pandemia, em função do papel das autarquias neste combate, a proximidade dos cidadãos é ainda maior. Tais circunstâncias tornam especialmente desigual o confronto político face aos adversários.
Adiar algumas semanas as eleições, para um momento em que se antecipa uma evolução no sentido da aproximação da normalidade da vida social, não é um ato de suspensão da democracia. Pelo contrário, é defender as condições para a prática democrática mais justa e mais efetiva.