Por Felícia Cabrita e João Amaral Santos
A apreensão do telemóvel do comandante português do avião privado que foi apanhado pela Polícia Federal brasileira, no passado dia 9 de fevereiro, em Salvador da Baía, com 500 quilos de cocaína é um rude golpe para a estrutura da organização criminosa envolvida no tráfico de droga, apurou o Nascer do SOL junto de fonte conhecedora da investigação.
Esta não é, aliás, a primeira vez que aquela polícia utiliza este método para dar o golpe final numa megaoperação de narcotráfico. A polícia brasileira usa uma tecnologia israelita que permite, em poucas horas, extrair e analisar todos os dados guardados num aparelho, incluindo contactos, e-mails, ficheiros ou mensagens, mesmo depois de tudo ter sido apagado. Graças a esta poderosa ferramenta, é ainda possível aceder a contas bancárias e respetivos movimentos e reconstituir passo a passo o percurso dos suspeitos desde que aterraram naquele país.
Neste caso, foi através de uma primeira análise ao aparelho do comandante do jato que os investigadores brasileiros estabeleceram a sua relação com João Loureiro, antes ainda de este último se ter apresentado na superintendência de Salvador, na sexta-feira, dia 19, para prestar declarações. A conexão entre os dois foi fácil de estabelecer, uma vez que o ex-presidente do Boavista não só constava dos contactos pessoais do comandante como tinha trocado mensagens com ele. Nesse mesmo dia, o copiloto do avião, de nacionalidade holandesa, também foi ouvido, tal como a hospedeira de bordo portuguesa. E, mais tarde, o telemóvel do próprio João Loureiro seria alvo das mesmas perícias quando foi ouvido pelas autoridades.
Foi precisamente nesse primeiro interrogatório de quatro horas que João Loureiro levantou pela primeira vez o véu sobre a relação de amizade que mantém há vários anos com Rowles Magalhães, empresário e advogado brasileiro que tem assinado um contrato-promessa com o proprietário da Omni para a compra desta companhia aérea, dona do avião onde seguia a droga. Nas declarações prestadas à polícia, Loureiro admitiu ter sido ele a propor o negócio e a ter um papel ativo para que o mesmo se concretizasse. O ex-presidente do Boavista abriu caminho ao empresário brasileiro em Portugal, cedendo-lhe no ano passado a Aristopreference Lda, sociedade criada em 2019, com sede numa morada no Porto, onde chegou a funcionar o seu antigo escritório de advocacia. Ao contrário do que afirmou Loureiro, não foi através desta empresa que Rowles formalizou a compra da Omni, mas sim da Referencecastle, Lda, uma sociedade criada dias depois de ter entrado na Aristopreference. A compra da Omni estará pendente da aprovação de um crédito de uma instituição financeira portuguesa.
E foi esta ligação empresarial entre Rowles e Loureiro que levou este último a justificar o pedido para ser ouvido no inquérito pela Polícia Federal brasileira. Ao contrário do que Loureiro afirmou aos media portugueses, o seu pedido teve na origem uma decisão do próprio Rowles. É que a cobertura dada pela comunicação social nos dois países à absurda quantidade de cocaína encontrada fez soar os alarmes: qualquer ligação da apreensão da droga à Omni tornara-se perigosa. Rowles quis demarcar-se do caso desde a primeira hora, o mais rapidamente possível e fez entrar em cena a sua equipa de advogados. Enviou então a advogada Bárbara Monteiro, que reside em São Paulo, até Salvador da Baía, para consultar o inquérito. Mas, neste aspeto, a advogada faz declarações pouco coerentes: «Vi no depoimento do comandante do avião que ele se referia a um dos tripulantes, o João Loureiro, que eu não conhecia, e liguei ao meu cliente [Rowles Magalhães] a pedir-lhe para falar com ele, pois era conveniente que ele viesse ao inquérito prestar declarações», disse ao Nascer do SOL. O que acabou por acontecer.
Bárbara Monteiro admite que Rowles «ficou preocupado» com todo o ruído criado em torno do amigo João Loureiro e da empresa que pretende adquirir. Perante a possibilidade de a companhia de aviação passar à condição de suspeita de fazer parte da logística da organização criminosa para o transporte da cocaína, e temendo ver-se envolvido no caso, Rowles não quis esperar. Embora, segundo a sua advogada, tal cenário seja impossível. E apresenta as razões: «O negócio com a Omni ainda não está concluído. Nunca poderia ser o meu cliente porque ele não administra, não é gestor, não tem ainda qualquer poder na empresa e, claro, não tem poder para autorizar voos. Contratualmente, tem essa previsão. Isso está escrito contratualmente». O próprio Rowles Magalhães poderá esclarecer este e outros assuntos, pois os responsáveis pela investigação querem ouvi-lo nos próximos dias.
Uma das questões é precisamente a natureza dos negócios que possui em Portugal. O empresário brasileiro continuou a expandir o universo das suas empresas no país ao longo do ano passado: depois de passar a ser dono da Aristopreference Lda, em julho de 2020, Rowles e o sócio Ricardo Agostinho criaram poucos dias depois a acima referida sociedade Referencecastle Lda, que tem sede no Porto e também se dedica à consultoria de negócios e gestão. O capital social da empresa é de 100 mil euros, mas a sua atividade não é conhecida. Julga-se, porém, que esta sociedade tem vindo a gerir vários investimentos no ramo imobiliário. O nosso jornal tentou contactar a empresa. O telefone toca, mas do outro lado da linha ninguém atende.
Recorde-se que aos media portugueses João Loureiro justificou a presença no Brasil com uma entrevista de emprego para o cargo de consultor numa empresa brasileira interessada em efetuar investimentos em Portugal. E usou a mesma versão junto das autoridades brasileiras.
Loureiro partiu de Tires a 27 de janeiro, a bordo de um jato privado da Omni, empresa com sede no Aeródromo de Cascais (em Tires). A aeronave tinha sido fretada pela Lopes e Ferreira, Assessoria Lda, uma microempresa com capital social de apenas 20 mil reais (cerca de três mil euros), sediada numa sala de um modesto prédio de São Paulo, que pagou a pronto mais de 100 mil euros pelo serviço de transporte aéreo. E esta é apenas mais uma das (várias) empresas sem atividade conhecida que têm vindo à luz do dia neste processo.
PJ já suspeitava do avião desde setembro de 2020. A Omni e o jato privado onde os 500 quilos de cocaína foram encontrados já estavam sob o radar das autoridades portuguesas há vários meses. Fonte da PJ confirmou ao Nascer do SOL que este avião já tinha sido alvo de buscas em setembro de 2020, no âmbito de uma operação de combate ao tráfico de droga. Na altura, a PJ terá tido a indicação de que esta aeronave transportava uma grande quantidade de droga dissimulada na fuselagem. As buscas acabaram, porém, por não encontrar nada. Mas a apreensão de meia tonelada de cocaína feita no dia 9 de fevereiro, em Salvador da Baía, permite confirmar que a polícia portuguesa estava na pista certa.
O avião – Dassault Falcon 900B, com matrícula CS-DTP – cruzava o Atlântico com frequência, a partir de Tires, onde a Omni possui um hangar privado (o número seis), onde estaciona e faz a manutenção da sua frota. O grupo possui várias empresas que tornam a operação de transporte aéreo praticamente autossuficiente. Uma delas é a Aeromec, uma empresa de manutenção de aeronaves que atua em Portugal, Cabo Verde e Brasil, países por onde passou a aeronave no epicentro deste crime.
O avião saiu de Portugal a 27 de janeiro e, após escalas em Cabo Verde e São Paulo, preparava-se para regressar a Tires quando a droga foi descoberta. O comandante foi obrigado a chamar a manutenção devido a um problema técnico e terá sido um dos mecânicos a descobrir um pacote no interior de um painel, tendo, na hora, contactado com as autoridades brasileiras. O jato encontra-se agora retido, à ordem das investigações no Brasil.
A investigação está a dar os primeiros passos e, por enquanto, apenas os cinco elementos que iam no avião – os três tripulantes e os dois passageiros, João Loureiro e o espanhol Mansur Ben-barka Heredia – são considerados suspeitos de pertencerem a um esquema de tráfico de droga e lavagem de dinheiro. Falta ainda alcançar o topo da organização, mas o acesso aos dados dos dois telemóveis deram músculo ao inquérito.
Elvis Secco, o craque de vários desmantelamentos de droga de âmbito internacional, afirmou ao nosso jornal que «o dono da droga está sempre a milhas dela»: «Quando se trata de apreensões em aviões, o que é habitual é que um piloto, e geralmente alguém da tripulação, façam parte do esquema. O mesmo se passa se a droga for transportada num camião. O motorista tem sempre de saber». «Depois, é necessário chegar à pirâmide e verificar se o proprietário tem ligações com alguma organização criminosa na Europa ou no Brasil», explicou o coordenador-geral do departamento de Repressão a Drogas e Fações Criminosas da Polícia Federal brasileira.
Foi, aliás, sob a sua liderança que, com acesso apenas a um telemóvel apreendido em 2020 a um elemento de uma rede de tráfico, que a Polícia Federal percebeu como funcionava toda a pirâmide de uma importante organização criminosa. A investigação – batizada de operação Caixa Forte II –, através das mesmas soluções tecnológicas agora utilizadas, ficou na posse de informações como números de contas bancárias, ordens de pagamento do líder e os nomes de todas as pessoas envolvidas.
No final, o resultado foram 422 mandados de prisão, 201 mandados de busca e apreensão e o confisco de bens no valor total de 252 milhões de reais (cerca de 38 milhões de euros).
A Polícia Judiciária portuguesa tem vindo a colaborar com a sua congénere brasileira e já abriu um inquérito a este caso. Neste momento, está a fazer um levantamento de possíveis antecedentes e outras situações suspeitas da parte dos envolvidos, como viagens efetuadas anteriormente entre Portugal e o Brasil, o património que têm nos dois lados do Atlântico e, sobretudo, os movimentos financeiros realizados recentemente. Todos os elementos do grupo dos cinco visitam com frequência o Brasil – e, desta vez, viajaram juntos.