A cidade centro-africana de Bambari, onde militares portugueses já tiveram de combater em várias ocasiões, voltou a ouvir o estrondo da guerra. A 15 de fevereiro, por volta da uma da tarde, militares centro-africanos, acompanhado por mercenários russos da Wagner e tropas ruandesas, tomaram de assalto os bairros maioritariamente muçulmanos de Bambari. Procuravam rebeldes da União para a Paz na República Centro-Africana (UPC), de Ali Darassa, um senhor da guerra que se infiltrara ele próprio na cidade tentando controlá-la de novo, contou ao Nascer do SOL uma fonte oficial da MINUSCA, a missão das Nações Unidas na RCA.
Os capacetes azuis ficaram à defesa, entrincheirados em pontos estratégicos, entrando esporadicamente em bairros para extrair civis em perigo, enquanto Bambari era inundada por fogo de armamento pesado, com sangrentos combates rua a rua, casa a casa, que duraram dois dias.
Desta vez, os 180 militares portugueses que compõem as Forças de Reação Rápida da MINUSCA ficaram longe da ação. Estão em Bangui, a recuperar dos combates que travaram há uns meses em Bossembélé, a oeste da capital, confirmou o Estado-Maior-General das Forças Armadas.
No meio do caos, pelo menos 14 pessoas, incluindo uma mulher e uma criança, foram massacradas numa pequena mesquita, no este da cidade, vitimadas por estilhaços de explosões – a MINUSCA assegura só soube do sucedido através de um relatório da Amnistia Internacional, que denunciou o crime.
Os rebeldes culpam os militares e os seus treinadores russos e ruandeses, as autoridades acusam a UPC de usar civis como escudo humano. Ambas acusações plausíveis, dado os rebeldes já o terem feito no passado, e os mercenários da Wagner – que estão na RCA após o Kremlin assinar um acordo para extração de diamantes com o Governo de Faustin-Archange Touadéra – não terem fama de ser particularmente cuidadosos com civis.
Para a Amnistia Internacional, ainda não é totalmente claro se todas as vítimas do massacre eram civis, ou se havia membros de grupos armados infiltrados no local. «Mas havia civis lá», assegura Abdoulaye Diarra, o investigador da Amnistia responsável pelo caso, ao Nascer do SOL. «É claro que os combates foram muitos intensos, e que ambos os lados não tomaram medidas suficientes para evitar que civis fossem feridos».
Não é fácil perceber exatamente o que aconteceu. Os investigadores tiveram de se basear apenas em fotos do sucedido, analisadas por especialistas forenses. Por agora, foi impossível encontrar testemunhas, mesmo entre familiares dos mortos ou sobreviventes. «Essa é a parte mais difícil, ninguém quer falar. Todos têm medo e não sabem em quem confiar», lamenta Diarra. O Nascer do SOL também contactou organizações locais e moradores de Bambari, prometendo confidencialidade, sem sucesso.
«Foi por isso que lançámos este comunicado de imprensa. As organizações de direitos humanos e os tribunais centro-africanos precisam de investigar o que aconteceu nesta cidade, nesse dia», apela o investigador da Amnistia. «Há um clima de medo».
O ataque à mesquita não foi o único crime cometido durante a ofensiva. Vários dos grupos armados ativos na cidade aproveitaram a confusão para vandalizar e saquear pelo menos quatro centros de saúde, roubando equipamento e medicamentos, contou Blaise Kabongo, diretor da delegação do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários em Bambari. «A situação ainda é muito instável, apenas faremos uma avaliação completa do que se passou na cidade na próxima semana», salientou. Felizmente, nenhum funcionário ficou ferido, dado que já se tinham posto em fuga.
Senhores da guerra
Bambari, quarta cidade da RCA, com uns 40 mil habitantes, sabe bem o que é sofrer. Nos tempos mais duros – quando uma coligação de rebeldes muçulmanos, a Séléka, derrubou o Presidente François Bozizé, em 2013, que ripostou com sanguinárias milícias cristãs, conhecidas por anti-balaka – Bambari esteve no centro do conflito sectário.
De um lado a cidade, a oeste, ficam bairros maioritariamente cristãos, do outro vivem sobretudo muçulmanos. São divididos por uma rara estrada alcatroada, crucial para ir da capital para o distante leste do país, e por anos de receio mútuo e animosidade.
Contudo, nos últimos anos, notou-se uma transformação radical. «Nas vielas movimentadas do mercado de kidjigira, em Bambari, clientes de todas as fés acotovelam-se, juntos, enquanto sai vapor de panelas penduradas e moscas voam à sua volta», estranhou um repórter da France Press, em 2017, após ser concluído um acordo de paz envolvendo grupos anti-balaka e Séléka, incluindo a UPC. «Finalmente, as pessoas, não têm medo», acrescentava. Na altura, as autoridades até declararam Bambari cidade piloto, o local onde concentrar os esforços de organizações humanitárias, símbolo de um país rejuvenescido.
Não que não tenham havido sobressaltos. Durante esses anos, Ali Darassa, um senhor da guerra de etnia fula que se diz ser oriundo do Niger ou da Nigéria – os vários relatos não batem certo – e cujo currículo inclui ter sido dirigente de um grupo armado no vizinho Chade, ganhou cada vez mais poder. Darassa, que se tornou por momentos aliado do Governo, tomou controlo da produção de café na região, bem como as minas de ouro de Ndassima, a uns 65 km de Bambari, além de cobrar impostos e portagens em partes da cidade, escreveu a Foreign Policy. Desde então, a UPC passou a controlar território que vai até à fronteira com o Sudão do Sul, abrindo caminho a todo o tipo de tráfico e contrabando, acrescentou fonte oficial da MINUSCA.
Contudo, Darassa desentendeu-se com o Governo centro-africano em 2019 e decidiu tomar a cidade de assalto. Foi travado por forças da MINUSCA, com as tropas portuguesas, as forças especiais da missão, bem no centro da refrega, num duro combate que se estendeu por mais de cinco horas.
Darassa foi escorraçado, mas muitas das suas tropas são oriundas de Bambari, capazes de se infiltrar facilmente entre a população. As eleições de dezembro de 2020, seriam boicotada por uma coligação que inclui a UPC, unindo milícias anti-balakas e sélékas sob a liderança de Bozizé, tendo Darassa aproveitado para retomar boa parte de Bambari. Até ser expulso a semana passada, em confrontos que deixaram um rasto de carnificina entre civis.
Coragem e dedicação
Mal se ouviu o som dos combates, a equipa dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Bambari, que dá apoio a um dos quatro centros de saúde atacados, no leste da cidade, preparou-se para tratar de feridos de guerra em massa.
«A essa hora, estava no escritório com o pessoal administrativo, e, felizmente, algumas pessoas já estavam no complexo para almoçar», conta ao Nascer do SOL Jacob Kuehn, coordenador da MSF em Bambari. «Na segunda-feira, o que fizemos foi preparar-nos para receber feridos. Mas o que vimos, na prática, foi que os combates eram tão pesados que as pessoas não conseguiam chegar ao hospital em segurança», lamentou Kuehn, que opera na margem sul do rio Ouaka, tendo muitos feridos que cruzar a linha da frente para lá chegar.
Durante esse dia, só uma mão cheia de feridos chegou ao hospital. «Foi silencioso durante a noite, e a nossa equipa continuou a tratar os pacientes que recebeu», continuou Kuehn. «Lentamente, os combates começaram a diminuir outra vez na terça-feira, por volta das duas horas da tarde. Duas horas depois as ambulâncias puderam começar a deslocar-se e a Cruz Vermelha trouxe-nos dezenas de feridos». Entre os 36 que foram chegando incluíam-se oito mulheres e nove crianças, entre os 17 meses e os 17 anos, que sobreviveram.
«Começámos a deslocar-nos mais livremente na tarde de terça-feira. Nesse dia, visitei um centro afetado pelos combates, chamado Elevage Centre du Santé, que é gerido pelo ministério da Saúde, mas que apoiamos com medicamentos, treino, supervisão».
Normalmente, trata-se de um sítio alegre, onde famílias podem ter acesso aos cuidados que tanto precisam, em que crianças podem ser vistas por pediatras e grávidas têm consultas pré-natais. Contudo, subitamente, transformou-se num campo de batalha.
«Eu próprio fui lá, vi que havia buracos de bala na tenda médica que usamos para consultas, havia um buraco de uma explosão numa das paredes, com um pouco menos de um metro de circunferência. Viam-se perfurações de estilhaços e o chão estava cheio de cartuxos», continua. «Para mim, isso sugere – não o posso confirmar, porque não o vi – que houve pessoas a disparar dentro do centro», lamenta o dirigente da MSF. «O que é sempre muito preocupante para nós, porque os centros médicos estão protegidos pela lei internacional, enquanto espaços neutrais».
No entanto, se houve algo que ficou claro face aos confrontos, foi a resiliência e coragem da população de Bambari, considera Kuehn. Apesar dos traumas de tantos anos de guerra, as pessoas rapidamente começaram a sair de casa, mal pareceu seguro, para ganhar o seu pão.
«Hoje estava a andar pela rua e vi que os mercados estão abertos, podemos ver a vida económica a voltar ao normal. É incrível quão rapidamente as pessoas recuperam, quão resilientes são, desejosas de alguma normalidade».
«Mas debaixo da superfície, há o impacto claro de um conflito prolongado. A um nível prático, as pessoas enfrentam aumentos do preço da comida, é mais difícil terem acesso a cuidados de saúde, irem à escola, as coisas básicas»
Aliás, uma semana depois dos combates, os profissionais do centro de saúde de Elevage já estavam de volta ao trabalho, no mesmo local onde chovera balas e explosivos. «Deixou-me uma profunda sensação de humildade ver estas pessoas aparecer para trabalhar, para cuidar de pacientes depois de uma semana pesada como aquela», elogia o dirigente da MSF. «E, no dia seguinte, nós estávamos lá para apoiá-los».