Por Henrique Pinto de Mesquita
Os hábitos humanos alteram-se consoante os tempos – lugar-comum. É, contudo, engraçado repetir o exercício de os rever. Estarmos ocupadíssimos na tarefa de viver faz com que nos esqueçamos de que os nossos comportamentos e crenças são o lápis da história do Homem. O mundo da influencer que faz vídeos a chorar para ter likes está separado dos textos de Nietzsche por menos de 140 anos. É o mesmo chão que Platão e Jesus pisaram. Às vezes não parece. Tendemos a esquecer-nos disso porque, emaranhados na vida, nem sempre fazemos o zoom out necessário para nos analisarmos coletivamente. Antropólogos saiam da sala, se faz favor.
O capitalismo trouxe um conforto mórbido ao Ocidente. Abunda em dinheiro. Não era suposto estarmos mais depressivos, mas somos pós-modernos. Estamos sem destino. Não há metanarrativas. Não há mito. Não acreditamos em Deus, não acreditamos no comunismo, não acreditamos no conhecimento, não acreditamos na democracia. Acreditamos apenas no eu – ‘as fotografias em que eu apareço’, ‘a minha carreira’, ‘o meu mapa astral’, ‘os 37 países que eu visitei’. Eu, eu, eu – a nova narrativa somos nós. O ego é o bálsamo com que banhamos a nossa alma (entretanto privatizada pela Amazon). Então a família? Então a história da Rússia? Então a poesia de Pessoa?
O mundo moderno faz-nos igualmente nulos. O capitalismo castra a genuinidade das coisas: todas elas passam a ser commodities. Torce a espinha à poesia da vida. Sim, Dr. Mesquita Nunes: a globalização dá de comer e é emancipatória. Talvez coisas como ‘poesia’ ou ‘alma’ sejam burguesices de quem tem o estômago cheio graças ao capitalismo. Mas então, admitindo que tem razão, e agora? Qual é o rumo? Ir à Worten comprar a smart tv para a qual juntamos miseravelmente dinheiro durante 14 meses é a grande transcendência dos tempos modernos? As nossas grandes narrativas serão a Apple e a Samsung, militarizando-nos na defesa dogmática de… marcas? Estamos mesmo convencidos de que os 350 mil anos do Homem – em que aprendemos a domesticação, inventámos Aristóteles, chegámos à Lua – chegaram ao seu pináculo maior estando gelatinosamente prostrados num sofá a comer Netflix vestidos com ‘comfy clothes’? É este o ex-líbris do Homem? Ser um pufe com pernas? É este conforto amorfo e reumático a grande vitória do capitalismo no Ocidente? É. E é, no geral, positiva – sem ironias. Todavia, que grande pasmaceira. Onde estão as grandes narrativas? Ainda há lírios nos campos? Onde está a poesia? Eis a descoberta do século: ser-se humano é mais que estar-se no sofá a beber da mesma doutrina cinzenta e americanizada que o resto do mundo. Há sensibilidade para explorar. O D. Quixote não estará ainda por ler?
O desenvolvimento do Homem fez-nos chegar à ‘sofisticação máxima da espécie’. Que encontra em marcas o sentido de pertença que outrora era encontrado na família. Que acha encontrar no seu ego traços suficientemente interessantes para o amar platonicamente. Que tenta ‘commodotizar’ o amor e – vejam lá – fazer merchandising disso no Instagram. E, principalmente, que se borrifou para a beleza da vida e se entregou ao sofá cor-de-rosa que o capitalismo lhe ofereceu num crédito a três anos com taxas de TAEG na casa dos 10%. O hiper- -sofisticado Homem Ocidental é isto. Está no seu direito – só não me peçam para o achar bestial.
Guimarães, 25 de fevereiro