Maria José Valério, a diva do Sporting Clube de Portugal, que vestia de verde da ponta dos pés à ponta dos cabelos, literalmente, sucumbiu a uma infeção por covid-19, na quarta-feira.
Voz incontornável da cultura popular e da música portuguesa, sobrinha do mítico Frederico Valério – que escreveu para Amália Rodrigues –, a ferrenha sportinguista foi a responsável pela popularização da “Marcha do Sporting”, um dos hinos mais emblemáticos do clube de Alvalade, escrito por Eduardo Damas e Manuel Paião, dupla responsável por muitos dos seus mais populares temas.
Figura presente desde muito cedo na Emissora Nacional e nas emissões experimentais da RTP, na Feira Popular, Maria José Valério presenteou, no início da década de 1950, o seu clube do coração com aquele que viria a tornar-se um hino do Sporting durante décadas. Num dos aniversários do clube, Valério marcou presença no Cinema Tivoli, e deu vida ao tema em gesto de oferenda. E que oferenda. O público – e o clube – gostou tanto que pouco a pouco a canção se tornou no hino do clube, e valeu-lhe a edição em disco no ano de 1953. A rivalidade com SL Benfica fazia-se já sentir nessa altura, e, contam alguns relatos, o hino “Ser Benfiquista” terá sido gravado no mesmo ano, e até no mesmo local.
A cançonetista e atriz, nascida na Amadora, em 1933, marcou a realidade nacional das décadas douradas da música e da rádio portuguesa, entre 1950 e 1970, e dedicou toda a sua vida ao clube de Alvalade. Tal foi o seu impacto na sociedade que teve direito até a ver o seu casamento com o toureiro José Trincheira, também ele dono de grande fama no país, transmitido na televisão, um feito raro no ano de 1962.
Um verdadeiro casamento real português, ao estilo britânico, no século XX. A cerimónia ocorreu na igreja do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, e foi celebrada por Manuel Cerejeira, então cardeal-patriarca de Lisboa. Contam os relatos que o evento fez parar a cidade de Lisboa, e os habitantes da capital saíram às ruas para celebrar junto de Maria José Valério e José Trincheira. Até o Papa João XXIII, na altura, terá feito soar os sinos do Vaticano, em sinal de bênção à união entre a artista e o toureiro. O gesto, no entanto, pareceu não surtir o efeito pretendido, com o casal a separar-se mais tarde.
A “Marcha do Sporting” foi reeditada no ano 2000, quando os leões venceram o troféu da Primeira Liga, e poderá voltar a ganhar fama daqui a uns meses, caso o bom momento pelo qual passa a equipa continue até ao fim da temporada. Na provável celebração do título de campeões nacionais, 19 anos depois da anterior conquista, vai, no entanto, faltar uma importante adepta do Sporting no Marquês de Pombal.
Valério destacou-se pela sua forte ligação ao Sporting CP, mas a sua carreira como artista vai muito além dos verdes-e-brancos. Maria José tocou nos principais palcos nacionais e internacionais durante as décadas de 50 e 60, nomeadamente no Brasil, Angola, França, Espanha, Canadá e África do Sul, dando ainda um ar da sua graça no pequeno e grande ecrã.
A estreia surgiu em 1952, na Emissora Nacional, com apenas 18 anos, e marcou o início de uma subida ao estrelato, acabando por partilhar palco e emissões com nomes como Rui de Mascarenhas, Gina Maria ou Paula Ribas. Os temas mais conhecidos surgem pouco depois, entre eles “Olha o Polícia Sinaleiro”, “Cantarinhas”, “Fado da Solidão” e “As Carvoeiras”. Já em 1958, Maria José Valério participou no 1.º Festival da Canção Portuguesa da Emissora Nacional, com o tema “A Folha da Hera”, da autoria de José Galhardo e do seu tio, Frederico Valério.
Talvez lado a lado com o hino do Sporting como o seu tema mais popular, Maria José Valério lançou “Menina dos Telefones” no ano de 1961, altura em que atingiu um dos picos da sua carreira, sendo considerada a “Rainha da Rádio de Goa”, território que na altura ainda se encontrava baixo administração portuguesa. Já no início do milénio, Valério era presença assídua na televisão, participando em séries como Casa da Saudade, da autoria de Filipe la Féria, e Um Solar Alfacinha.
Maria José Valério morreu na quarta-feira, vítima de uma infeção por covid-19. Residente na Casa do Artista, onde um surto do novo coronavírus já cobrou, pelo menos, oito vidas, a artista ainda foi internada no Hospital de Santa Maria, mas acabaria por sucumbir à infeção.
Em reação à sua morte, o clube de Alvalade realçou a sua “voz inconfundível” e a sua “imagem singular”, que passava, por entre o característico ar de diva, muitas vezes pelo cabelo pintado de um verde alusivo às cores do clube. “A artista, sportinguista de coração, marcava presença em Alvalade sempre que podia e participava em várias das festas leoninas espalhadas pelo país”, recorda o clube em comunicado, deixando aos familiares e amigos “o seu mais profundo pesar, não deixando de enaltecer e agradecer os anos de amor e dedicação ímpar de Maria José Valério”.
Não tardaram a chegar as reações de antigos membros do clube de Alvalade, como Ricardo Sá Pinto, e históricos adeptos, como a apresentadora Rita Ferro Rodrigues, além de todos os cantos do mundo do entretenimento, como, por exemplo, pela voz de Manuel Luís Goucha, que conviveu nos seus primeiros anos na RTP com a cantora.
Também vozes do mundo da política lamentaram a morte de Maria José Valério, entre elas a de Marcelo Rebelo de Sousa, que através de um comunicado realçou o “exemplo da sua paixão clubística e do seu estilo emotivo”. Também Graça Fonseca, ministra da Cultura, publicou os seus pêsames pela morte da artista, relembrando a “dedicação ao público que sempre admirou a sua irreverência” e a “alegria contagiante que passava nas suas interpretações”.
Maria José Valério ficará na memória como uma das figuras mais icónicas do Sporting CP, bem como da cultura popular e dos anos dourados da música portuguesa.