"Foi como se não bastasse / tudo quanto nos fizeram / como se não lhes chegasse / todo o sangue que beberam (…) E a cada novo assalto / cada escalada fascista / subirá sempre mais alto / a bandeira comunista". Eis que se ouviu, nos primeiros segundos do episódio inaugural da série "PCP: 100 anos a resistir", o poema de José Carlos Ary dos Santos, escrito, a pedido do Avante!, para acompanhar as fotos do Centro de Trabalho de Braga, do PCP, incendiado e destruído em 11 de agosto de 1975 pelos contra-revolucionários do ELP {Exército de Libertação de Portugal].
De seguida, Bruno Amaral de Carvalho iniciou um périplo por Lisboa com Jacinto Godinho – jornalista de investigação da RTP desde 1988 e professor auxiliar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa – levando-o, entre outros locais, ao número 225 da Rua da Madalena, sede da Associação dos Empregados de Escritório de Lisboa onde, a 6 de março de 1921 se realizou a assembleia da fundação do Partido Comunista Português (PCP), tendo lá sido eleitos os primeiros organismos de direção: Junta Nacional, Comissão Geral de Educação e Propaganda e Conselho Económico.
Recorrendo a imagens da entrevista a Amaral de Carvalho, em 2002, concretizada para a reportagem "O Exército de Che", o também autor da série "Ei-los que Partem – Uma História da Emigração", em 2006, estabeleceu um paralelismo entre a vaga de discussão sobre a crise nos Partidos Comunistas, na Europa, e a geração que os mantém vivos. À época, aquando do desenvolvimento do primeiro trabalho, o jornalista espxplicitou que esta reflexão não se tratava de uma novidade na medida em que, durante todo o século XX, discutiu-se o fim do comunismo. A título de exemplo, na ditadura de Estaline, na revolução cultural de Mao Tse Tung ou na repressão da primavera de Praga, linha de pensamento esta que acompanhou os militantes dos partidos de índole comunista e marxista-leninista também na queda do Muro de Berlim e, consequentemente, no fim da União Soviética. E, se há 19 anos, os comunistas portugueses pareciam atravessar "uma das mais graves crises da sua história (…) uma crise aberta pelo chamado movimento dos renovadores", no arranque da série de onze episódios, que agora realiza, Jacinto Godinho voltou a perguntar que motivos levam um jovem a aderir aos ideais comunistas, explorando as utopias e os símbolos que o seduzem.
Como tal, no debate que se seguiu ao visionamento da reportagem, José Pacheco Pereira começou por recuar até aos primeiros anos do PCP, evocando o 20 de dezembro de 1920 – quando, na Associação dos Caixeiros, na Rua António Maria Cardoso, se constituiu uma comissão para a criação do partido – e, posteriormente, os meses de janeiro e de fevereiro de 1921, em que foram elaboradas as bases orgânicas do partido atualmente liderado por Jerónimo de Sousa. "Quando a gente vai ver os textos da época, tem uma ideia muito diferente daquilo que começou por se tornar uma historia mais ou menos estereotipada. Fundava-se o PCP porque permitia interferir na vida politica, eleitoral, e a CGT [Confederação Geral do Trabalho] não conseguia ou não devia. Havia uma complementaridade entre a CGT, que organizava os trabalhadores manuais, e o PCP que organizava os que não eram trabalhadores manuais e não tinham lugar na central sindical", partilhou José Pacheco Pereira, investigador da história contemporânea portuguesa.
A seu lado, Jacinto Godinho lançou uma pergunta: "Porque é que o PCP comemora o seu centenário com um cartaz que não tem absolutamente nenhuma referência histórica? Pretende passar a mensagem de um partido com futuro, mas o passado foi vivido com alguma perturbação", atirou, adicionando que "há por um lado o elogio dos heróis mas há, por outro, o esquecimento das figuras que foram ficando pelo caminho", referindo-se, por exemplo, ao secretário-geral do PCP, Bento António Gonçalves, que morreu no campo de concentração do Tarrafal em 1942. "Em relação aos locais, achei curioso que o local onde nasceu o PCP é hoje em dia um ateliê de arquitetos. Não sei se devia ter, mas talvez fosse interessante, do ponto de vista do património histórico da cidade, saber que há ali uma referência. E seria interessante perceber porque nasceu ali", disse viajando, quase sem querer, por momentos fulcrais do partido, como a grande manifestação de fevereiro de 1924 em que se gritou "Abaixo a reação!" ou "Fora o predomínio das forças vivas", quando o PCP admitiu que se esforçou por desviar os manifestantes que queriam tomar de assalto o parlamento até à sede do jornal "A Batalha".
Outras datas poderiam ser evidenciadas, como o ano de 1923, em que José Carlos Rates foi eleito secretário-geral do partido, o de 1927 com a passagem do PCP à clandestinidade, mas prestemos atenção ao de 1931, quando Álvaro Cunhal aderiu ao partido. Na ótica da jornalista do jornal Público, São José Almeida, "o PCP vive um pouco o problema de ter cem anos de história", pois "é muito difícil conseguir continuar a estar ativo lembrando tudo", sendo que "há aqui outra vertente que é a história das depurações internas que mantêm os partidos comunistas vivos e, portanto, a história do PCP é de omissões, de nomes esquecidos ou mais ou menos omitidos e mitigados".
Em abril de 1936, Cunhal foi eleito para o comité central do PCP e, volvido um ano, preso pela primeira vez. Seguir-se-iam mais períodos de encarceramento, num total de 15 anos e, destes, oito completos em isolamento. "Havia muita ignorância acerca das datas da fundação. A ocultação é mais tardia. Nesta altura, era pura e simplesmente ignorância. Há dois tipos de esquecimento: há as ruturas da memória e a purga, o esquecimento deliberado, que é realmente relevante a partir de 1941. Começa logo com os panfletos insultuosos feitos à direção, como Vasco de Carvalho", declarou, aludindo à purga interna através da qual viria a ser expulso aquele que, em 2005, descreveu como "símbolo de muita gente indefesa que foi vítima de calúnias, no ambiente claustrofóbico da ditadura, quando ninguém se podia defender, uma coisa que o PCP fez muitas vezes como instrumento de combate político".
A seu lado, João Madeira, doutorado em História Institucional e Política Contemporânea, afirmou que "Álvaro Cunhal ganhou a notoriedade por uma superioridade intelectual e por ter criado um ascendente junto dos seus camaradas, pois foi tornado secretário-geral formalmente em 1961 mas, muitos anos antes disso, era o dirigente incontestado". "Penso que tenha sido o último trabalho que Cunhal levou a cabo, a formação da geração que deu continuidade à sua linha de pensamento. Apesar de ser um PCP e uns jovens que leem o passado e reinterpretam-no. É notório, por exemplo, a forma como pensam na constituição, a ideia da revolução que está em constante trabalho de discussão e reestruturação", finalizou o autor da reportagem, alinhando-se com a posição do historiador e adicionando que "é um partido que se está a pensar apesar de uma forma não muito evidente, fora dos holofotes".