O mundo da realeza está muito longe das histórias de encantar com príncipes e princesas que vivem felizes para sempre.
Aos privilégios inerentes à pertença à família real em qualquer monarquia está indissociavelmente ligado um conjunto de obrigações e regras educacionais, comportamentais, protocolares violentamente exigentes e rigorosas.
O Rei, a Rainha, os príncipes e princesas não são cidadãos comuns, com direitos e deveres iguais aos de todos os outros.
Essa é uma diferença fundamental para a república, em que o poder emana do povo e o chefe de Estado, eleito, é um entre iguais, ainda que não possa deixar de considerar-se primus inter pares (pois se até os mais puros republicanos falam em ‘mais alta figura do Estado’ quando se referem ao Presidente, ou em primeira dama ou primeiro senhor, quando existem, ou em ‘segunda figura do Estado’ para identificar o presidente do Parlamento e por aí fora).
E também o Presidente, o primeiro-ministro, um ministro ou outro titular de órgão de soberania – seja governante, parlamentar, juiz, procurador, militar… – no exercício e por inerência das suas funções, deve obedecer a normas de conduta, a regras de ética e comportamentais que não são exigíveis ao comum dos cidadãos. Simplesmente porque, ao contrário do que se tornou politicamente correto defender, não são cidadãos comuns ou, sendo, quando se encontram a desempenhar funções públicas com estatuto próprio deixam de o ser. Se assim não for, como poderia reconhecer-se-lhes autoridade?
Só os exageros próprios dos períodos revolucionários e a subversão do conceito de liberdade aligeiraram a exigência, abandalhando os regimes e as sociedades e mergulhando-as numa enorme crise de valores. Tanto nas repúblicas como nas monarquias.
Fazer parte da família real, se confere aos seus membros um conjunto de regalias e privilégios, obriga a sacrifícios óbvios.
Mesmo nas modernas sociedades viradas do avesso, não há direitos sem deveres e só o cumprimento destes legitima a reivindicação daqueles.
É por isso que a entrevista desta semana que o casal Meghan e Harry vendeu a Oprah Winfrey não passou de uma, embora milionária, medíocre encenação e tentativa de ataque ao Palácio de Buckingham, à família real, ao reinado de Isabel II e à monarquia constitucional inglesa.
Tentativa absolutamente falhada, diga-se, a avaliar pela reação dos ingleses e não só.
Mas foi mais do que isso. Tratou-se de uma evidente manifestação de retrocesso civilizacional.
A começar pelo facto de Meghan e Harry terem ‘vendido’ a entrevista. Mesmo que o destino dos milhões pagos pela produtora fosse o mais nobre. É vergonhoso.
Como é indecoroso o facto de terem revelado alegadas conversas e exposto em público supostas querelas pessoais e familiares. Chama-se a isso lavar roupa suja, o que não se faz em público. Menos ainda quando se trata da família, pouco importando se é ou não da realeza.
A família é o núcleo central da sociedade do presente e do futuro, como foi do passado. Apoucá-la é dinamitar os alicerces dessa mesma sociedade e do indivíduo como ser social.
A entrevista, em si, é pura vendetta.
De uma atriz que se deslumbrou com as mordomias da realeza e que, obviamente, não soube corresponder e adaptar-se às exigências do estatuto conquistado por um casamento que foi expressão de um ecumenismo totalmente contraditório com as acusações que agora profere contra o Palácio de Buckingham.
E de um príncipe mimado que herdou da mãe o mesmo rancor à família real e às obrigações subjacentes ao estatuto de que sempre beneficiou e ao qual ousou renunciar (mas sem abdicar de um considerável desafogo financeiro), não tendo sido nunca renegado.
Buckingham sempre assumiu que Harry era filho de Diana e de Carlos, e nunca sequer admitiu que o irmão de William pudesse ser fruto da relação da princesa do povo com o oficial do Exército britânico James Hewitt.
Foi, aliás, este quem, nos anos 80, procurou desmentir os rumores que circulavam no mundo inteiro. «Harry já andava quando a minha relação com Diana começou», declarou ao Daily Mirror, admitindo, porém, que «o cabelo ruivo é muito semelhante» ao seu e que «as pessoas dizem» que os dois são «muito parecidos».
Depois desta entrevista de Meghan e Harry a Oprah, não pode deixar de duvidar-se se a única ligação de Harry à família real não seria mesmo o facto de ser irmão de William por ser filho de Diana.
Tal como, aqui ao lado, em Espanha, Juan Carlos pode nunca ter dado dezenas de milhões à sua amante mas sim à mãe do seu filho mais novo.
Diana ficou conhecida como a ‘Princesa do Povo’ – como lhe chamou Tony Blair (quando se confirmou a sua morte, no verão de 1997), perante a sua popularidade em todo o Reino Unido menos no Palácio de Buckingham. Que nunca lhe perdoou a ousadia de violar todas as regras. Como também a Carlos cedo retirou todas as pretensões à sucessão.
Porque a vida real dos reis, rainhas, príncipes e princesas está muito longe das histórias de sonho e de encantar.
E as monarquias que resistem não cedem nem se vergam às suas fraquezas ou aos seus mais fracos – independentemente da popularidade (Diana), dos direitos (Carlos) ou do papel histórico (Juan Carlos) que possam ter tido.
Porque só assim, implacavelmente, resistem.
Mesmo numa sociedade em profunda crise de valores e sobretudo quando essa crise de valores lhes entra palácios dentro.