por Vítor Gonçalves
Jornalista e professor de História em Maputo
Descobri há dias que o reboliço que grassa em Portugal sobre a purificação do passado afinal é coisa séria.
Ou que, pelo menos, há pessoas que descobriram que o passado está todo errado, pois os que noutros tempos cá viveram – imagine-se – não pensavam como nós.
E não se riem quando dizem isto.
Estarão cansados do presente?
Viverão num panglossiano ‘melhor dos mundos possíveis’ e toca a remendar a História?
Li o argumentário.
A retórica é um nadinha repetitiva: escolhe-se um período, um acontecimento ou uma personagem, investigam-se na net umas exclamações adequadas à moral, aos costumes, à moda de março de 2021, ou ao que se debitava ontem nas redes sociais, e toca a desfraldar sobre o passado processos cíveis e criminais; ou projetos de construção civil, no caso dos que defendem as demolições.
Avante paladinos da moral retroativa; de pé heróis do anacronismo!
Afinal, concluí, não estão sozinhos nesta epopeia.
Há exemplos a seguir.
Sim, por que não aplicar ao Padrão dos Descobrimentos a solução talibã para a estatuária budista de Bamiyan, no Afeganistão?
Quando o neto não gosta do que o avô fez, dinamitam-se os álbuns de família e pronto, ficam garantidos os direitos humanos.
No que toca a aplicar as nossas crenças ao passado, já os prolixos historiadores soviéticos dos anos sessenta do século XX eram exímios em traçar, com clareza e militar rigor, o progresso da dialética leninista e o desabrochar da luta de classes entre as populações Cro-Magnon.
E os neandertais, defendiam eles, só não tinham consciência da exploração do homem pelo homem por evidentes erros e insuficiências. Falta de estudo do Capital, por parte de alguns camaradas trogloditas menos atentos.
Não foram os nazis ao confins do Tibete para redesenharem a singular pureza genética ariana do povo alemão?
Ora, se os soviéticos podiam defender a mentecapta aplicação dum modelo do século XX à pré-História europeia, não poderão os democratas fazer o mesmo a qualquer período da História?
Era o que faltava!
Claro que o nosso modelo – justo, intemporal e sagrado – é válido no presente, farol do futuro.
Há que aplicá-lo ao passado depressa, não vá ele passar.
Estará certo que Camões tenha escrito as Endechas a Bárbara Escrava? Elegias a uma cativa, lascívia de um branco pelo exotismo de outras ‘raças’?
Então e as Pirâmides? Não seria de bom-tom fazer uma petição para as demolir? Não serão uma glorificação desmesurada da exploração humana?
E a promiscuidade de Sócrates, de Platão ou de Aristóteles, os seus hábitos de convivência com adolescentes? Não deveriam levar a uma cruzada antifilosófica?
E a democracia senhores, que havemos de fazer a um sistema que teve origem numa escravocrata Atenas?
E a imoralidade da Bíblia, com um Antigo Testamento cheio de massacres, filicídios e um Deus que manda arrasar cidades e exterminar a sua população, bebés incluídos?
E a história da ‘costela’ respeitará o papel da mulher no mundo contemporâneo ou será melhor ajustar o adónico entrecosto a um sistema de quotas?
Talvez polir o texto, ou mesmo proibir um livro em que o grande milagre é alguém mandar torturar e matar o próprio filho…
Mas grave, grave é a questão colonial. De repente, não me lembro de nenhuma região do mundo que não tenha sido colonizada, mais que não fosse pelos sapiens que exterminaram – ou assimilaram – as espécies anteriores.
Sim, como descalçar esta bota?
No caso dos Descobrimentos Portugueses, talvez protestar junto da Arábia Saudita. Se não fosse a colonização árabe e os seus conhecimentos de navegação, teríamos ido para o mar?
Mas atenção: se aqueles portugueses que viveram no século XV e XVI não pensavam como nós, não tinham os nossos valores democráticos, o nosso carinho pelos direitos humanos, o nosso respeito pelas vilipendiadas minorias, só podia ser por distração.
Ou por, de novo, graves insuficiências no estudo da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Que defenderão depois? Reescrever Os Lusíadas para se conformar com o Acordo Ortográfico?
Quando não se pode reescrever a História de acordo com os nossos padrões, mais vale apagá-la.
Nos casos mais graves – e se não pudermos mesmo apagá-la – declaramo-nos envergonhados dela, e pronto, resolve-se assim a coisa.
Oh, infatigáveis colecionadores de likes diversos, incansáveis arqueólogos do politicamente correto.
Fiquem sabendo que não, não era assim.
É mais simples.
Aqueles portugueses que embarcavam sem saber para onde não se vestiam apenas de maneira diferente, ou gostavam de construir as frases de outra forma, utilizando palavras fora do prazo; não, eles também pensavam diferentemente de nós.
Não se podiam arrepiar ou envergonhar com o que hoje nos choca, porque tinham um horizonte de consciência distinto do nosso.
Sei que vos pode surpreender que haja quem pense de maneira diferente, mesmo que já cá não ande a defendê-lo.
Mas era assim.
A ética, a justiça a moral ou os costumes dependem do tempo.
Nunca foram verdades absolutas e intemporais.
Acusar um marinheiro português do século XV – ou Vasco da Gama – de não respeitar outras culturas, é o mesmo que acusar os homens de há 12 mil anos de não terem mostrado respeito pelo ecossistema ao dizimarem os mamutes; ou os empresários londrinos de meados do século XVIII de não terem tomado medidas para prevenirem o aquecimento global.
Ou Heródoto de não saber nada de geografia, por nunca se ter referido à América e ainda por cima defender a escravização de todos os não-gregos.
Não são só as tecnologias, a ciência, as modas, a alimentação, a moeda, a língua, os países, as religiões ou a necessidade do apêndice que mudam.
Os conceitos de justo e injusto, certo e errado ou a nossa visão do outro – a mentalidade – também.
Ora lá está: «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades».
Querer imputar aos séculos passados os nossos costumes, ética ou conhecimentos é apenas um disparate como outro qualquer.
Pretender julgar os mortos, por terem sido homens do seu tempo, é arrogantemente bizantino.
Não seria mais útil que aqueles que se perdem em análises anacrónicas da História a aprendessem, em vez de a quererem demolir?