por Henrique Pinto de Mesquita
Tinha combinado comigo começar a escrever às 22h. Abri este word convencido de que daqui sairia uma peça a criticar a entrevista de Meghan e Oprah. Antes de começar, dou um salto ao WhatsApp e descubro que um conhecido se tinha letalmente atirado de um quinto andar.
Heidegger dizia que «somos atirados ao mundo». Os Doors ecoaram.
Atirados.
A-tira-dos.
Como quando, na borda da piscina, baloiçávamos os nossos primos pequenos até ao momento em que decidíamos atirá-los. Splash! – e nasce outra Maria do Mar enquanto a tia se delicia a comer uma manga biológica. Agora lide com a existência, Maria do Mar.
Atirados.
Não escolhemos nascer, não escolhemos o nosso nome, não escolhemos a família, não escolhemos o meio em que crescemos. Crescemos. E só quando somos intelectualmente penetrados com a consciência de que, ao nascer, somos atirados ao mundo, é que atingimos integralmente o que Heidegger propõe. Só aí estamos atirados, mesmo que tenhamos sido atirados à nascença. Nasce-se. E depois tem-se um nome em honra de um trisavô – um mundo; e depois cresce-se numa família mórmon – outro mundo; e depois é-se português – outro mundo. Somos atirados a um caldo de narrativas que acabam por ditar quem somos.
Vem-se do pó e ao pó se volta. Desde pequeno que tenho o vício saudabilíssimo – recomendado pelos melhores nutricionistas – de flirtar com pensamentos sobre a morte. Contudo, apenas há um ano consegui verbalizar mentalmente um pensamento que ainda não vi escrito (talvez por ser tão básico). É simples: quando se morre, não se morre apenas – morre-se para sempre! É óbvio que a infinitude da morte está implícita na palavra. Todavia, por vezes sinto que algumas pessoas não compreendem que morrer é morrer para sempre. Depois, não compreendem também que ‘para sempre’ é o infinito dobrado em oitos. Por ter uma consciência tão obsessiva e intrusiva sobre a efemeridade da vida valorizo-a tanto – um processo tão doloroso quanto bonito. Os deuses invejam-nos por sermos mortais e vivermos sob esta condição tão delicada e fugaz. Os deuses invejam-nos por vivermos sabendo que no minuto a seguir podemos já não estar. E é por ver a existência de forma tão transcendente que fico tão transtornado quando alguém decide não querer estar.
E se atira do mundo.
A-ti-ra.
Se a-tira.
Atiram-me ao coração quando me contam que alguém se atirou de pistola ou de um quinto andar. Todos nós já refletimos sobre o suicídio. Para quem já o estrebuchou até às entranhas – e nele não encontrou nada para além da infelicidade que deve ser o nada, ver alguém cometê-lo é saber que se perdeu uma guerra nojenta. Um bug do universo que nos torna inimigos de nós próprios. Quem me dera poder apagá-lo. Quem me dera poder dar-vos a mão. Quem me dera poder ler-vos aquele texto do Eduardo Lourenço. Quem me dera fazer-vos ver que há luz. Quem me dera que sentissem o quentinho que se pode sentir no coração. Quem me dera que tivessem conseguido ajuda. Quem me dera ter sido vosso ombro. Quem me dera ter carregado a vossa cruz. Quem me dera que ainda estivessem. A quem ainda está, e sofre, que saiba que aqui estou, como amigo, para fazer notar a transcendência que pode ser encontrada – todos os dias! – nos lírios dos campos. Atirados ao mundo: mas em Paz com ele.