Quase três meses depois do início da campanha de vacinação da covid-19 e depois do primeiro revés de as entregas não serem as negociadas pela Comissão Europeia, esta semana mostrou um outro tipo de problemas que podem abalar os planos de vacinação: quando um medicamento chega ao mercado, e é inédito estar a ser utilizado num curto espaço de tempo por tantos milhões de pessoas em simultâneo como está a acontecer com as primeiras vacinas da covid-19, a comunicação de reações adversas – na definição da Agência Europeia do Medicamento uma ”ocorrência médica nefasta após exposição a um medicamento, que não é necessariamente causada por esse medicamento” – é uma das peças para sinalizar efeitos que possam não ter sido detetados nos ensaios clínicos, fazer ajustes nas bulas e recomendações de utilização e responder (ao longo do tempo e com dados do terreno) à pergunta sobre se os benefícios que levam um medicamento a ser aprovado superam os riscos e para quem. O sistema nacional de farmacovigilância foi criado em Portugal em 1992 e foi reforçado a nível europeu na última década. E se as reações podem ser notificadas às dezenas, centenas e milhares diariamente, as conclusões levam mais tempo.
Dúvidas sobre a relação entre eventos tromboembólicos graves e a vacina da AstraZeneca, que os Estados-membros tinham inicialmente adquirido em maiores quantidade, colocaram o sistema em foco. A maioria dos países europeus suspendeu o uso da vacina sem esperar por uma posição da Agência Europeia do Medicamento, que iniciou uma investigação e manteve ao longo dos últimos dias a posição de que os benefícios da vacina compensam os riscos (que todos os medicamentos podem ter). A mesma posição foi reiterada ontem pela Organização Mundial de Saúde, mas os países invocaram o princípio de precaução, sem especificar o que serão garantias suficientes para retomar a vacinação.
Não é a primeira investigação da era covid-19 mas a anterior não permite comparação. No ano passado, o comité de avaliação da EMA já tinha aberto a primeira investigação em torno de medicação usada na covid-19, no caso para perceber se havia uma relação de causa efeito em lesões renais em doentes com covid-19 tratados com o remdesivir, mas, apesar de a conclusão (que excluiu uma relação causal) só ter chegado no mês passado, o medicamento continuou a ser usado. Agora, em causa, segundo os dados apresentados pela EMA, estão 30 casos de tromboembolismo em cinco milhões de europeus vacinados com a vacina da AstraZeneca até 10 de março, entre os quais casos fatais, e as primeiras conclusões são esperadas nesta quinta-feira, mas a farmacovigilância (e novas reações adversas a suscitar avaliação) irá manter-se.
Esse trabalho é em grande medida invisível. Apesar de as bases serem públicas, são relativamente discretas e as autoridades nacionais e europeias têm optado por não ser muito exaustivas na apresentação desse tipo de informação ao público, embora a literatura alerte há vários anos que existe uma subnotificação de reações adversas e de o objetivo de qualquer pessoa as poder comunicar é tornar os medicamentos mais seguros.
Quantas reações adversas?
Numa conferência de imprensa nesta semana, a diretora da EMA, Emer Cooke, questionada sobre quantos casos foram reportados na UE de eventos tromboembólicos relacionados com vacina, respondeu com a informação a 10 de março, dizendo que estão permanentemente a ser atualizados e que é expectável que quando se chama a atenção para uma questão aumentem o reporte.
Também o Infarmed, que informou terem sido reportados dois casos de eventos tromboembólicos diferentes dos que fizeram soar o alarme lá fora, sem espeficar em quê, não tem fornecido dados globais sobre reações adversas. No entanto, têm ocorrido e sido reportadas, como é expectável em qualquer medicamento e sugerem as bulas dos próprios produtos.
Para perceber exatamente quantas, o i pesquisou informação tanto no site do Infarmed como na base de dados europeia do notificações de reações adversas a medicamentos suspeitas, que reúne a informação reportada pelos diferentes Estados-membros e é atualizada a cada duas semanas. No site do infarmed está disponível um balanço até 3 de março. Pode ler-se que, naquela altura, o sistema nacional de farmacovigilância tinha recebido 2284 notificações de reações adversas a vacinas da covid-19, num total de 972 183 doses administradas, o que significa que em cada mil pessoas que receberam uma dose da vacina foram reportadas 2,3 reações adversas. Metade (1255) foram consideradas graves. A mesma ficha informativa dá conta de que desde que começou o processo de vacinação e até ao passado dia 3 de março foram registados seis casos fatais após a vacinação, maioritariamente em idosos com uma média de idades de 80 anos. “Estes casos foram avaliados e em nenhum deles se estabeleceu uma associação direta entre a administração da vacina e o óbito. Muitos destes indíviduos deste grupo etário de vacinados apresenta condições de saúde mais frágeis (alguns com diversas comorbilidades). A vacinação contra a covid-19 nestes grupos não reduzirá a mortalidade por outras causas, que continuará a ocorrer”.
O i tentou perceber junto do Infarmed se haveria disponibilidade para falar com alguém responsável pela área de farmacovigilância, mas o pedido ontem não foi acedido.
162 mil reações reportadas na União Europeia
A base de dados europeia, o sistema EudraVigilance, reforçado em 2017, dá mais informação: além de ter dados atualizados até 13 de março, portanto mais recentes, permite verificar quantas reações adversas foram reportadas de cada vacina, em cada país, grupo etário, grupos de doença e severidade dentro de cada um, sendo mesmo possível obter uma descrição dos diferentes casos (sendo salvaguardada a identidade e a nacionalidade). Uma quantidade infinita de informação, que é a que é analisada em detalhe pelo Comité de Avaliação do Risco em Farmacovigilância (PRAC) da Agência Europeia do Medicamento, que nos últimos dias tem estado a passar a pente fino o dossiê da AstraZeneca. Os dados disponíveis, que o i analisou, mostram que desde que começou a vacinação da covid-19 foram reportados na UE/EEA (o que inclui, além dos Estados- membros, a Islândia, o Liechtenstein e a Noruega) 162 610 casos de reações adversas após a toma das vacinas, num total de 50 milhões de doses administradas até ao momento. A maioria (102 100 casos) surge associada à vacina da Pfizer, a primeira aprovada e a mais administrada na União Europeia.
Para se saber ao certo quantas doses de cada vacina já foram feitas é preciso ir a outra fonte de informação europeia, a platraforma de monitorização da vacinação do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças. Este tipo de dados, embora sejam fornecidos pelos paises, também não são publicados regularmente em Portugal.
Até 17 de março, foram administradas mais de 40 milhões de doses da vacina da Pfizer na UE, pelo que é possível estimar que por cada mil doses foram notificadas cerca de 2,5 reações adversas suspeitas no espaço europeu. No caso da vacina da Pfizer, 80% das reações adversas foram notificadas no grupo dos 18 aos 64 anos, maioritariamente em mulheres. A maioria das reações (mais de 60 mil) são reações associadas ao local de administração. A maioria não foi reportada como grave, mas nos diferentes grupos de doenças contabilizam-se centenas de situações fatais.
Já da vacina da AstraZeneca foram até 13 de março reportados 54 571 casos suspeitos de reação adversa a nível europeu, sendo que até 17 de março foram administradas 8,7 milhões de doses da vacina. Dá um maior número de notificações por cada mil doses administradas: 6,2. Mais uma vez, são as mulheres que reportam mais reações adversas (podem ser comunicadas por profissionais de saúde, farmacêuticas ou pelos próprios doentes). Tal como na Pfizer, a maioria das reações surgem no grupo dos 18 aos 64 anos, mas é maior o peso das reações na população com mais de 65 anos. Com muito menos vacinadas administradas, já foram notificadas mais reações adversas acima dos 65 anos em pessoas que fizeram a vacina da Astra do que as que fizeram a vacina da Pfizer. Têm sido também reportadas mais reações classificadas como graves.
A vacina da Moderna, até ao momento a menos administrada na Europa, com cerca de 2,5 milhões de doses feitas nos diferentes Estados-membros, é a que tem menos reações adversas reportadas, ao todo 5939 até 13 de março. Dá 2,3 notificações por cada mil doses administradas, em linha com a vacina da Pfizer.
Como estamos em Portugal
Em Portugal, segundo os dados disponíveis no vaccine tracker do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças, até 17 de março foram recebidas cerca de 1,5 milhões de doses de vacinas da covid-19 e administradas 1.168.994 (9,7% da população já fez a primeira dose e 4,2% a vacinação completa). Ao todo, foram administradas 916 504 vacinas da Pfizer (79%), 195 047 da AstraZeneca (16%) e 57 443 da Moderna (4%). E as reações adversas reportadas seguem a mesma distribuição: ao todo, os dados disponíveis na plataforma EudraVigilance mostram que até dia 13 de março tinham sido reportadas 2784 casos de reações adversas associadas às vacinas, a maioria (2498) após a toma da vacina da Pfizer. Foram depois reportadas 202 reações adversas relacionadas com a vacina da AstraZeneca e 84 com a vacina da Moderna. Em linha com a média europeia, significa que foram reportadas 2,3 reações adversas por cada mil doses administradas e pelo menos até ao final da semana passada não estavam a ser reportadas proporcionalmente mais reações à vacina da AstraZeneca em Portugal. Tudo indica que voltará a ter luz verde, mas tal como se espera que sejam vacinadas milhões de pessoas, a comunicação de reações adversas não vai ficar por aqui.
Vacinas vs reações adversas
Pfizer/BiONTech (aprovada na UE a 21.12.2020)
• Doses administradas na UE/EEA até 17 de março: cerca de 40 milhões
• Em Portugal: 916 504
• Reações adversas comunicadas na UE/EEA até 13 de março: 102 100 / Reações reportadas em Portugal: 2498
Moderna (6.01.2021)
• Doses administradas na UE/EEA até 17 de março: cerca de 2,5 milhões
• Em Portugal: 57 443
• Reações adversas comunicadas na UE/EEA: 5939 / Reações adversas
reportadas em Portugal: 84
AstraZeneca (29.01.2021)
• Doses na UE/EEA até 17 de março: cerca de 8,7 milhões
• Em Portugal: 195 047
• Reações adversas na UE: 54 571
• Reações em Portugal: 202
Fonte: EudraVigilance e ECDC
Também há reações adversas à cafeína e a medicamentos comuns
Em 2020 foram notificados ao Infarmed 8.131 casos de reações adversas a medicamentos. A nível europeu foram 1,4 milhões.
A base europeia de notificações adversas a medicamentos EudraVigilance lista milhares de medicamentos e substâncias e o relatóro anual de 2020, divulgado na semana passada, resume a dificuldade que é mergulhar pelos dados: no final do ano passado passou-se a barreira dos 18,6 milhões de casos de segurança reportados, referentes a 10,5 milhões de casos individuais de reações adversas. A base europeia de farmacovigilância, lê-se, é uma das maiores do mundo.Em 2020 foram reportados a nível europeu 1,8 milhões de casos suspeitos de reações adversas a medicamentos, 143 958 comunicações feitas pelos próprios doentes – uma das vertentes que os sistemas de farmacovigilância têm procurado reforçar. Alguns estudos já sugeriram que até 94% das reações adversas não são reportadas. Por outro lado, a nível europeu há pouca análise sobre o seu impacto. Um estudo de 2015 sobre a “epidemiologia das reações adversas” estimou, com base na revisão de 47 artigos, que na Europa as reações secundárias a medicamentos são a causa de 3,5% dos internamentos hospitalares. O mesmo artigo lembra que, com base nos estudos nos EUA, já foi estimado que reações adversas graves causam por ano 197 mil mortes na Europa, admitindo que o número possa ser menor. Conclusão: faltam análises.
Voltando ao relatório da EudraVigilance, em 2020 foram sinalizadas 1888 situações como exigindo mais investigação, o processo agora desencadeado na vacina da AstraZeneca. Ao todo o comité PRAC investigou 81 dossiês e em 37 o resultado foram atualizações na informação a doentes e profissionais de saúde. Em dois casos foram dadas novas orientações sobre prescrição e em 16 manter a monitorização foi considerado suficiente. Num ano normal e apesar de milhares de notificações, não é assim habitual que um medicamento saia do mercado nem é provável que isso acontece com a vacina inglesa.
A base de dados europeia mostra que o reporte de reações adversas é feito nos mais diversos medicamentos, incluindo os mais comuns. A ficha do paracetamol revela que na última década foram reportadas 64 mil casos de suspeita de reação adversa, 55% por mulheres e 32% por homens. Intoxicações, problemas gastroentestinais e reações cutâneas têm o maior peso. Já o ibuprofeno motivou ao longo da última década 54 mil reportes de reações adversas.
Há também uma lista com informação sobre reações adversas a substâncias. Já foram por exemplo reportados a nível europeu 1588 casos de suspeita de reação adversa à cafeína, de bebés a idosos. O canabidiol, substância ativa da canábis que começa a ser usada em medicamentos, motivou até à data 2283 comunicações de reações adversas, a maioria no ano passado.O relatório anual do Infarmed, que o i também consultou, mostra que no ano passado foram reportados em Portugal 8.131 casos de reações adversas a medicamentos, 63% pela indústria farmacêutica, 33% pelos profissionais de saúde e apenas 4% (300 casos) pelos próprios doentes. Cerca de metade foram reações graves. O número de reações reportadas atingiu um valor recorde em 2019, com mais de 10 mil notificações, mas em ano de atenções e trabalho focado na pandemia também caiu.