Austrália. Violação virou abalo político

O caso de Brittany Higgins, que denunciou ter sido violada dentro do gabinete de uma ministra, abala o país. 

A maré do movimento Me Too, que varreu o mundo nos últimos anos, trazendo para a ribalta a violência contra as mulheres, deixara a sociedade australiana relativamente intocada. Até agora. As denúncias de Brittany Higgins, ex-assessora do Partido Liberal da Austrália, do primeiro-ministro Scott Morrison, que contou ter sido violada no gabinete da ministra da Defesa, abalaram a Austrália, levando a uma avalanche de protestos e incendiando a discussão sobre o consentimento sexual (ver texto ao lado). O caso de Higgins «foi uma dolorosa lembrança para as mulheres que, se pode acontecer no Parlamento, pode acontecer em qualquer lado», lembrou a própria, perante as dezenas de milhares de manifestantes que saíram à rua, esta semana.

 

Sonho tornado inferno

Quando Higgins se voluntariou  para organizar uma saída à noite entre colegas de trabalho, a 23 de março de 2019, não imaginava que acabaria com a sua vida virada do avesso, no meio uma tempestade política. Na altura, aos 24 anos, tinha começado a trabalhar no gabinete da ministra da Defesa, Linda Reynolds, há poucas semanas, como assessora de imprensa, o seu «trabalho de sonho», e estava ansiosa por conhecer os colegas, contou ao Channel Ten.

Nessa sexta-feira, seguiram para um popular bar em Camberra, onde um colega – a imprensa australiana não revelou o seu nome, e Higgins contou apenas que se tratava de uma «estrela em ascensão» entre os conservadores – não parou de lhe pagar bebidas. Higgins ficou tão bêbeda que chegou a cair para o lado, mas esse colega ofereceu-lhe boleia de táxi. Prometeu levá-la até casa, mas em vez disso, a jovem deu por si no Parlamento. Cambaleou até ao escritório da ministra e desmaiou no sofá, acordando enquanto era violada – fotos da altura mostram a sua perna cheia de nódoas negras, presumivelmente durante o ataque.

No entanto, o pesadelo acabara de começar. Nessa semana, a jovem foi convocada para uma reunião com a ministra da Defesa, na mesma sala onde terá sido violada. Soube que o seu alegado violador fora despedido, por ‘quebra do código de conduta’. Na altura, «não sabia que seguranças entraram no escritório várias vezes, vendo-me despida», contou Higgins. «Não sabia que debateram se haviam de chamar uma ambulância».

Contudo sentiu o ambiente no seu local de trabalho a mudar. E por, mais que a ministra garantisse que apoiaria uma queixa formal na polícia, a sensação era que a sua carreira estaria acabada se o fizesse – semanas depois, seriam convocadas eleições federais.

 Higgins acabou por se demitir, incapaz de trabalhar ali, sentindo-se abandonada e isolada. «Foi tão confuso porque estas pessoas eram os meus ídolos», contou a jovem, dois anos depois, perante a multidão. «Eu era um problema político».

Contudo, antes de Higgins conseguir falar publicamente do assunto, fazendo queixa na polícia, passaram-se dois anos – às suas denuncias, em fevereiro, seguiu-se uma torrente de alegações de abuso sexual e assédio contra altas figuras da política. O preço que pagou foi elevado. Acabou apelidada de «vaca mentirosa» pela própria ministra de Defesa – que se viu obrigada pela justiça a pedir desculpa e a pagar uma indemnização à jovem – e o seu namorado, David Sharaz, deu por si obrigado a abandonar o seu emprego como consultor político.

«Não acredito que possa continuar o meu trabalho depois dos eventos da última semana», lamentou Sharaz, ao Guardian, quando o casal fez as malas e abandonou Camberra. Sharaz,  antigo repórter de política da SBS e da Sky News, trabalhava numa empresa de análise de media, e parte das suas funções envolvia fechar negócios com o Governo australiano, requerendo uma relação «saudável» com este, escreveu a 7News.  Enquanto isso, assessores dos liberais eram acusados de andar a dizer à imprensa que Sharaz tinha uma vendetta contra o partido – já Higgins, desde que contou ter sido violada, não voltou a encontrar emprego.

Mais uma vez, uma mulher teve de escolher entre a carreira e a dignidade, mas, desta vez, a sua história ressoou entre as australianas, escreveu a jornalista Virginia Haussegger, no Canberra Times. «Como todas as mulheres que leem isto saberão, as ramificações de uma escolha tão devastador são venenosas, fosse o que fosse que Higgins tivesse escolhido», considerou. «Não fazer nada significaria ficar para sempre marcada por uma vergonha secreta. Ir a público, como ela fez agora, significaria que o nome dela ficará para sempre manchado por um escândalo. Ir a tribunal – bem,  sabemos o inferno que será».