EUA. Prestes a obter mais uma moeda de troca na corrida às vacinas

A questão é se os EUA a usarão para uma distribuição mais equitativa da vacina ou para açambarcar mais doses. Os sinais não são positivos.

Com a Europa e os Estados Unidos a bloquear o acesso a patentes da vacina contra a covid-19 em países em desenvolvimento, multiplicam-se as vozes que exigem que a prioridade seja maior produção e distribuição da vacina, não o lucro da indústria farmacêutica. E aproxima-se a data para decidir o que o Governo dos EUA fará com a patente de uma tecnologia chave para desenvolver vacinas conta a covid-19, a 30 de março. Talvez seja a última hipótese para pressionar a Moderna, Johnson & Johnson, Novavax, CureVac e Pfizer-BioNTech a abrir mão das suas patentes – mas, a cada minuto que passa, são menos vacinas que são produzidas, e mais vidas perdidas.
 
Numa altura em que países ricos e de médio rendimento receberam mais de 90% das 400 milhões de doses de vacinas distribuídas, a urgência é enorme. E o problema não é só para os países que ficam de fora – teme-se que o alastrar descontrolado do vírus faça surgir novas variantes, que possam até por em risco a eficácia da vacina, como se viu na África do Sul.
 
Aliás, a África do Sul, ao lado da Índia, está na frente da luta pelo direito à vacina, junto com outros países que fazem parte da Rede de Produtores de Vacinas em Países em Desenvolvimento (DCVMN, na sigla inglesa), que produz cerca de 3,5 mil milhões de doses de vacinas por ano – até agora, praticamente só conseguiram acesso à vacina contra a covid-19 da AstraZeneca, que partilhou as suas fórmulas com uma empresa indiana, a Serum, a maior produtora mundial de vacinas. 
 
Estes países têm avançado com medidas para obrigar as farmacêuticas a partilhar vacinas na Organização Mundial de Comércio (OMC), mas até agora têm sido bloqueados pela UE, Reino Unido e EUA, revelou esta semana uma fuga de informação para a BBC. Estes países argumentam que quebrar patentes desincentiva ao investimento da indústria farmacêutica na investigação. Outros lembram que boa parte da investigação à vacina contra a covid-19 foi financiada com 10 mil milhões de dólares (equivalente a 8,37 mil milhões de euros) em dinheiro público ou fundos de instituições sem fins lucrativos, segundo a Lancet. 
 
Até o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, se mostrou favorável a forçar as farmacêuticas a partilhar patentes. “Se uma licença temporária às patentes não pode ser emitida agora, neste momento sem precedentes”, notou, citado pela Reuters. “Então qual será a altura certa?”.
 
 
 
Moeda de troca Não foi só em fundos públicos que as grandes farmacêuticas pegaram para desenvolver vacinas contra a covid-19. Também usaram tecnologia de ponta, produzida com dinheiro do Estado americano – o género de pesquisa longa, sem lucro a curto ou médio prazo, que as farmacêuticas hesitam em financiar. 
 
O objetivo, alcançado com sucesso em 2016, era encontrar uma método de produzir vacinas quase de imediato, uma espécie de chave mestra para os vários tipos de vírus, explicou o responsável pela investigação, Barney Graham, do National Institutes of Health, ao New York Times. É essa a patente crucial que será decidida a 30 de março. 
 
No início de 2020, quando cientistas chineses descodificaram o código genético da covid-19, a equipa de Graham trabalhava com a Moderna, a produzir outra vacina. “Simplesmente virámo-nos para o coronavírus e pensámos: quão rápidos é que podemos ser?”, lembrou. Dias depois, usando o método que desenvolvera no National Institutes of Health, já tinham enviado a receita à Moderna, que começou os seus ensaios clínicos – hoje, sabemos que as restantes vacinas de mRNA foram feitas usando muito da técnica de Graham. 
 
A questão que fica por resolver é quanto da propriedade intelectual dessas vacinas é que pertence ao Governo americano? E como é que isso pode servir para pressionar as farmacêuticas a ceder temporariamente as suas patentes a países em desenvolvimento?
 
Para Christopher Morten, professor de Direito na Universidade de Nova Iorque, especializado em patentes médicas, “podemos fazer isto da maneira difícil, e processar por violação de patentes”, explicou, notando que tal processo poderia custar somas enormes às empresas. “Ou eles podem ser simpáticos e abrir mão da tecnologia”, acrescentou, ao New York Times. Fica por saber se o Governo de Joe Biden usará essa moeda de troca para exigir uma distribuição de vacina mais justa à escala global – ou para conseguir obter ainda mais doses e mais rápido, nesta corrida à vacina.
 
Entretanto, tanto a Rússia e a China têm preenchido o vazio deixado pelos EUA e pela Europa, ganhando cada vez mais lastro diplomático, com os países em desenvolvimento desesperados por vacinas. Gamaleya, uma farmacêutica estatal russa, já assinou vários protocolos para produção de vacina com o Cazaquistão e a Coreia do Sul, enquanto empresas chinesas trabalham com os Emirados Árabes Unidos, Indonésia e Brasil.